|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GUILHERME WISNIK
Dia de festa em Chamula
Devo chamá-los de índios? A exuberância de cores nas roupas das mulheres não chega a esconder a resignação
|
OS BANCOS foram removidos, e
o chão recoberto por folhas,
onde as pessoas vêm sentar-se. As imagens dos santos se mantiveram intactas nos seus nichos (Sebastião crivado de flechas, Antônio
de coroinha na cabeça, Francisco de
pés descalços...), mas voltaram a ser
apenas imagens, dublês extraviados
da fé cristã para outros fins. Lá fora a
igreja domina a praça, com bandeirinhas coloridas que dão a impressão
de uma festa junina. É dia de feira, e
uma multidão de moradores dos vários "pueblos" vizinhos vem para
Chamula comprar e vender produtos (roupas, animais, alimentos). A
feira se espalha pela praça e avança
sobre o cemitério logo ao lado, que
não tem muro de separação: é apenas um piso de terra e relva polvilhado de cruzes.
As mesmas cruzes que, no interior
da igreja, são signos abstratos, aludindo a outra coisa que não mais o
calvário de Cristo.
Impossível apagar da cabeça a
imagem dos homens bêbados caídos
à beira da estrada na entrada do vilarejo: um, dois, dez, 20, como se fossem troncos cortados. De manhã,
mas já com o sol alto, saudando ao
revés os visitantes, na ausência de
uma placa de "bienvenidos a San
Juan Chamula". Devo chamá-los de
índios? A exuberância de cores nas
roupas das mulheres mais o fino
trançado dos cabelos não chegam a
esconder os pés descalços, a resignação atávica, o sorriso triste de "fria
prata" (como diria algum poema de
García Lorca).
Dentro, a fumaça do turíbulo
preenche o espaço da igreja, como
numa missa tradicional, mas um coro de choro de crianças substitui a
reza. Quase todas as famílias trazem
crianças pequenas ou de colo, e se
aglomeram de cócoras, como que
em procissão, esperando serem
atendidas pelos curandeiros sentados no fundo da nave.
Mas trazem também uma outra
coisa, uma oferenda estranha de tão
familiar: garrafas e mais garrafas de
Coca-Cola que, esvaziadas no ritual
de cura, se acumulam empilhadas
no altar, formando um mosaico estarrecedor, cristalino e instável como um castelo de cartas.
Logo, um turista sensato me explica que o ritual só se completa com o
arroto da criança, daí a qualidade
balsâmica do refrigerante.
Já o padre, constrangido na entrada da igreja, não explica nada. Saio
aturdido da "casa de Deus", mas atino, em meio à confusão da feira, entre bandeirinhas de papel, para outdoors vermelhos emoldurando a
praça, com a onda da Coca-Cola e a
palavra "Disfruta".
Me lembrei dessa manhã vivida
no México alguns anos atrás a propósito da recente visita do Papa a
São Paulo, empenhado em recuperar valores morais dogmáticos de
modo a imprimir um "padrão Vaticano" (casto, conservador e assistencialista) a um mundo em transformação. Teme, provavelmente,
transformar-se no padre missionário de Chamula.
Enquanto isso, ensaiamos abraçar
em tom de deboche a campanha para a eleição de um monumento brasileiro entre as sete novas maravilhas do mundo. "Vote no Cristo", diz
o slogan, que parece de propaganda
política, com o redentor acompanhado da arvorezinha do Bradesco.
E completa: "Ele é uma maravilha!".
Texto Anterior: Frase Próximo Texto: Arte contemporânea chinesa é exposta no Rio Índice
|