São Paulo, segunda-feira, 14 de maio de 2007

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GUILHERME WISNIK

Dia de festa em Chamula


Devo chamá-los de índios? A exuberância de cores nas roupas das mulheres não chega a esconder a resignação

OS BANCOS foram removidos, e o chão recoberto por folhas, onde as pessoas vêm sentar-se. As imagens dos santos se mantiveram intactas nos seus nichos (Sebastião crivado de flechas, Antônio de coroinha na cabeça, Francisco de pés descalços...), mas voltaram a ser apenas imagens, dublês extraviados da fé cristã para outros fins. Lá fora a igreja domina a praça, com bandeirinhas coloridas que dão a impressão de uma festa junina. É dia de feira, e uma multidão de moradores dos vários "pueblos" vizinhos vem para Chamula comprar e vender produtos (roupas, animais, alimentos). A feira se espalha pela praça e avança sobre o cemitério logo ao lado, que não tem muro de separação: é apenas um piso de terra e relva polvilhado de cruzes.
As mesmas cruzes que, no interior da igreja, são signos abstratos, aludindo a outra coisa que não mais o calvário de Cristo.
Impossível apagar da cabeça a imagem dos homens bêbados caídos à beira da estrada na entrada do vilarejo: um, dois, dez, 20, como se fossem troncos cortados. De manhã, mas já com o sol alto, saudando ao revés os visitantes, na ausência de uma placa de "bienvenidos a San Juan Chamula". Devo chamá-los de índios? A exuberância de cores nas roupas das mulheres mais o fino trançado dos cabelos não chegam a esconder os pés descalços, a resignação atávica, o sorriso triste de "fria prata" (como diria algum poema de García Lorca).
Dentro, a fumaça do turíbulo preenche o espaço da igreja, como numa missa tradicional, mas um coro de choro de crianças substitui a reza. Quase todas as famílias trazem crianças pequenas ou de colo, e se aglomeram de cócoras, como que em procissão, esperando serem atendidas pelos curandeiros sentados no fundo da nave.
Mas trazem também uma outra coisa, uma oferenda estranha de tão familiar: garrafas e mais garrafas de Coca-Cola que, esvaziadas no ritual de cura, se acumulam empilhadas no altar, formando um mosaico estarrecedor, cristalino e instável como um castelo de cartas.
Logo, um turista sensato me explica que o ritual só se completa com o arroto da criança, daí a qualidade balsâmica do refrigerante.
Já o padre, constrangido na entrada da igreja, não explica nada. Saio aturdido da "casa de Deus", mas atino, em meio à confusão da feira, entre bandeirinhas de papel, para outdoors vermelhos emoldurando a praça, com a onda da Coca-Cola e a palavra "Disfruta".
Me lembrei dessa manhã vivida no México alguns anos atrás a propósito da recente visita do Papa a São Paulo, empenhado em recuperar valores morais dogmáticos de modo a imprimir um "padrão Vaticano" (casto, conservador e assistencialista) a um mundo em transformação. Teme, provavelmente, transformar-se no padre missionário de Chamula.
Enquanto isso, ensaiamos abraçar em tom de deboche a campanha para a eleição de um monumento brasileiro entre as sete novas maravilhas do mundo. "Vote no Cristo", diz o slogan, que parece de propaganda política, com o redentor acompanhado da arvorezinha do Bradesco. E completa: "Ele é uma maravilha!".


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