São Paulo, sexta-feira, 14 de maio de 2010

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CARLOS HEITOR CONY

Saindo do buraco


O Brasil, para o mundo exterior, só existia quando bandidos morriam nas favelas


ATÉ POUCO tempo, um homem da minha geração tinha direito a pouquíssimas certezas. Na realidade, certeza mesmo só havia uma: a de que o Brasil não dava certo.
Pessimismo à parte, creio que todos os que analisavam as nossas possibilidades estavam de acordo: tivemos -nós, os homens de minha geração- dois momentos em que chegamos a acreditar que o Brasil poderia ser, com alguma boa vontade, e como disse um escritor austríaco, um país de futuro.
Capaz, entre outras coisas, de se tornar um produtor de história, e não o mero consumidor que somos até hoje.
Esses dois momentos foram 1945 e 1960. Na primeira data, 1945, conseguimos sair de uma ditadura que nos colocava ao lado das republiquetas latino-americanas e sonhávamos em construir uma nação dirigida para o futuro.
Em 1960, no auge da euforia desenvolvimentista (era JK), tudo parecia estar dando certo e o Brasil deslanchava definitivamente.
Durou pouco essa euforia, tivemos o movimento de 1964, voltamos a compor o doloroso painel das republiquetas latino-americanas.
Bem, o tempo passou, outras datas chegaram e em pleno século 21 estávamos compactados entre aquelas nações que jamais teriam futuro algum.
Afinal, quando se fala em nações que deram certo, pensa-se em uma dúzia delas que pelo passado ou pelo presente marcaram sua trajetória na evolução do pensamento, da ciência e da arte da humanidade.
O restante, mais de cem nações, espreme-se na mediocridade nacional, produzindo espasmodicamente um fato para a história, mas sem seguimento estrutural, sem continuidade de progresso.
Para dar um exemplo: passei duas semanas no exterior e só soube da existência do Brasil através dos jornais que noticiavam as enchentes do Rio.
Tempos atrás, escrevi um conto em que um cidadão de Barra do Piraí ligava para a Redação de um grande jornal do Rio a fim de dar um furo de reportagem.
A notícia até que era boa: fora preso em um "rendez-vous" de Barra do Piraí um figurão que se passava por protonotário apostólico. A ligação telefônica -naqueles idos de 50- estava péssima e, aqui no Rio, o chefe da reportagem não compreendia a grandeza e magnitude do furo.
Depois de muita insistência, desligou o telefone e comunicou ao chefe da Redação: "Tem um camarada aqui que deseja dar um furo de Barra do Piraí. Que será?". O chefe da Redação foi lógico e fulminante: "Em Barra do Piraí? Só se for enchente do rio Paraíba!".
Acredito que a brava cidade fluminense já superou esse estágio elementar e, como outros burgos espalhados pelo nosso país, enfrente agora a sua era de progresso material e espiritual.
Resumindo sua história na base de enchentes do Paraíba, catástrofes naturais ou sociais, assim também o Brasil, para o mundo exterior, só existia quando bandidos morriam em confronto com a polícia nas favelas ou caiam temporais homicidas, os rios inundando ruas e casas, grande parcela da população ficando desabrigada.
Fora disso, éramos um dos cento e tantos países que, apesar de manterem uma vida artística e científica autobadalada, só funcionava quando a praça da Bandeira aqui no Rio e o Tietê em São Paulo transbordavam.
De repente, ou quase de repente, parece que superamos esse estágio acabrunhador. Ainda existimos à custa de tragédias naturais, como a devastação da selva amazônica, mas pouco a pouco começamos a levantar a cabeça. Não me refiro a eventos como a Copa do Mundo de 2014 ou as Olimpíadas de 2016.
Não sou economista nem cientista social para citar números e resultados. Mas hoje o Brasil ajuda até a Grécia a sair de sua entaladela financeira. E além de cobertores e víveres para o Haiti, manda uma ajuda em dólares maior do que a dos Estados Unidos e da Alemanha.
Bem verdade que em Niterói ainda há gente esperando por cobertores e moradias, mas nem tudo pode ser perfeito, ainda chegaremos lá.
E antes que acabe a crônica, é bom explicar o que seja um protonotário apostólico citado aí em cima. Não tenho muita certeza, mas acho que é um dignatário eclesiástico nomeado pelo papa e, nessa condição, não devia frequentar um "rendez-vous", nem mesmo em Barra do Piraí.


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