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MARCELO COELHO
Nós aqui, e eles lá
"Subúrbio", nova canção de Chico, traz ambigüidades difíceis de avaliar e incômodas
DÁ UMA sensação estranha ouvir "Subúrbio", a primeira
faixa do novo disco de Chico
Buarque. Em artigo para a revista
eletrônica "Errática" (www.erratica.com.br), Arthur Nestrovski observa que ele canta "com a boca
meio mole, num limite entre a imitação e a ironia".
Há mesmo um tom de lamúria,
de cansaço, na própria música, como que contradizendo alguns trechos da letra. Certos versos repetem uma conhecida conclamação
das escolas de samba ("Fala, Mangueira!" etc.), sob o peso de uma
melodia hipnótica, repetitiva, circular. A maior estranheza, contudo, talvez resulte da comparação
entre "Subúrbio" e "Gente Humilde", sucesso de Chico escrito em
parceria com Vinicius e Garoto, já
faz quase 40 anos.
"São casas simples, com cadeiras
na calçada/ E na fachada escrito
em cima que é um lar/ Pela varanda flores tristes e baldias/ Como a
alegria que não tem onde encostar..." Basta citar esses versos para
que a melodia volte à memória, ela
própria nostálgica, e nos leve para
um passeio de mãos dadas, com
uma singeleza de gerânio e margarida. "Casas sem cor,/ Ruas de pó,
cidade/ Que não se pinta/ Que é
sem vaidade", responde em "Subúrbio", sem idealizações, como se
falasse de uma terra arrasada.
Mas, se o contraste fosse esse
-entre um bairro humilde nos
anos 60 e a periferia de hoje-, não
haveria motivo para estranheza.
Acontece que a nova canção de
Chico Buarque traz ambigüidades
mais incômodas, difíceis de avaliar.
Quando se fala em "casas sem
cor" e "ruas de pó", aponta-se para
um estado de privação, certamente
indesejável. A miséria se torna,
contudo, atributo moral -o subúrbio é "sem vaidade"-, como se fosse necessário encontrar algo para
elogiar na situação descrita.
Há como que uma reviravolta de
ponto de vista, um "giro de câmera", para lembrar os malabarismos
de "Cidade de Deus", o filme de
Fernando Meirelles e Kátia Lund.
O olhar penalizado se transfigura
numa exaltação de samba antigo
("Amélia não tinha a menor vaidade" etc.), ao mesmo tempo em que
a música se estica numa espécie de
gemido, entre a tristeza e a ironia.
O subúrbio é instado a se expressar por si mesmo: "Dança teu funk,
o rock,/ Forró, pagode, reggae/ Teu
hip hop/ Fala na língua do rap/
Desbanca a outra/ A tal que abusa/
De ser tão maravilhosa".
Podemos entender que essa "outra" a ser "desbancada" pelo subúrbio seria a zona sul, a "cidade maravilhosa"; mas pela frase é também possível entender que não se
trata de uma cidade, e sim de uma
"língua", a da MPB, a ser silenciada
pela "língua do rap".
Talvez a principal ambigüidade
de "Subúrbio" esteja nisso. O "nosso lado", da zona sul, é maravilhoso, ao passo que "lá", nos lados de
Madureira e Nova Iguaçu, "não
tem brisa/ não tem verde-azuis",
"não tem moças douradas", "não
tem claro-escuro". A valoração positiva está do "lado de cá", enquanto o sentido político dos versos se
inclina para um "lado de lá" que, ao
contrário do que se fazia habitualmente na esquerda, é visto agora
sem idealização.
A oposição entre "lá" e "aqui",
muito marcada na letra de "Subúrbio", produz um certo mal-estar,
que afinal é o de todo sujeito que,
sem abrir mão de seus privilégios,
reconhece que a situação social
brasileira é insustentável.
O sentimentalismo de "Gente
Humilde" pode parecer ingênuo
aos olhos de hoje, mas se beneficia
de maior coerência afetiva: "E aí
me dá uma tristeza no meu peito/
Feito um despeito de eu não ter como lutar/ E eu que não creio, peço
a Deus por minha gente,/ É gente
humilde, que vontade de chorar".
Em vez de pedir a Deus por "minha gente", "Subúrbio" pergunta
cruamente "que futuro tem/ Aquela gente toda". Intensificando-se
ao longo das últimas décadas, a separação espacial e social parece
tornar bem mais vagos os laços de
solidariedade humana entre poeta
e tema. Mas... por que o tema?
"Perdido em ti", conclui Chico,
"eu ando em roda", e reescreve os
versos de "Águas de Março", símbolo da impotência de esquerda
nos anos 70: "É pau, é pedra/ é fim
de linha". Como se, sobre "aquela
gente", já não houvesse o que dizer.
Eles que tomem a palavra.
Fim de linha? De algum modo,
sim. A canção só poderia, desse
ponto de vista, recolher-se ao silêncio. Felizmente, contudo, depois do fim da linha, há mais 11 faixas no disco de Chico.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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