São Paulo, quarta-feira, 14 de junho de 2006

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MARCELO COELHO

Nós aqui, e eles lá

"Subúrbio", nova canção de Chico, traz ambigüidades difíceis de avaliar e incômodas

DÁ UMA sensação estranha ouvir "Subúrbio", a primeira faixa do novo disco de Chico Buarque. Em artigo para a revista eletrônica "Errática" (www.erratica.com.br), Arthur Nestrovski observa que ele canta "com a boca meio mole, num limite entre a imitação e a ironia".
Há mesmo um tom de lamúria, de cansaço, na própria música, como que contradizendo alguns trechos da letra. Certos versos repetem uma conhecida conclamação das escolas de samba ("Fala, Mangueira!" etc.), sob o peso de uma melodia hipnótica, repetitiva, circular. A maior estranheza, contudo, talvez resulte da comparação entre "Subúrbio" e "Gente Humilde", sucesso de Chico escrito em parceria com Vinicius e Garoto, já faz quase 40 anos.
"São casas simples, com cadeiras na calçada/ E na fachada escrito em cima que é um lar/ Pela varanda flores tristes e baldias/ Como a alegria que não tem onde encostar..." Basta citar esses versos para que a melodia volte à memória, ela própria nostálgica, e nos leve para um passeio de mãos dadas, com uma singeleza de gerânio e margarida. "Casas sem cor,/ Ruas de pó, cidade/ Que não se pinta/ Que é sem vaidade", responde em "Subúrbio", sem idealizações, como se falasse de uma terra arrasada.
Mas, se o contraste fosse esse -entre um bairro humilde nos anos 60 e a periferia de hoje-, não haveria motivo para estranheza.
Acontece que a nova canção de Chico Buarque traz ambigüidades mais incômodas, difíceis de avaliar.
Quando se fala em "casas sem cor" e "ruas de pó", aponta-se para um estado de privação, certamente indesejável. A miséria se torna, contudo, atributo moral -o subúrbio é "sem vaidade"-, como se fosse necessário encontrar algo para elogiar na situação descrita.
Há como que uma reviravolta de ponto de vista, um "giro de câmera", para lembrar os malabarismos de "Cidade de Deus", o filme de Fernando Meirelles e Kátia Lund.
O olhar penalizado se transfigura numa exaltação de samba antigo ("Amélia não tinha a menor vaidade" etc.), ao mesmo tempo em que a música se estica numa espécie de gemido, entre a tristeza e a ironia.
O subúrbio é instado a se expressar por si mesmo: "Dança teu funk, o rock,/ Forró, pagode, reggae/ Teu hip hop/ Fala na língua do rap/ Desbanca a outra/ A tal que abusa/ De ser tão maravilhosa".
Podemos entender que essa "outra" a ser "desbancada" pelo subúrbio seria a zona sul, a "cidade maravilhosa"; mas pela frase é também possível entender que não se trata de uma cidade, e sim de uma "língua", a da MPB, a ser silenciada pela "língua do rap".
Talvez a principal ambigüidade de "Subúrbio" esteja nisso. O "nosso lado", da zona sul, é maravilhoso, ao passo que "lá", nos lados de Madureira e Nova Iguaçu, "não tem brisa/ não tem verde-azuis", "não tem moças douradas", "não tem claro-escuro". A valoração positiva está do "lado de cá", enquanto o sentido político dos versos se inclina para um "lado de lá" que, ao contrário do que se fazia habitualmente na esquerda, é visto agora sem idealização.
A oposição entre "lá" e "aqui", muito marcada na letra de "Subúrbio", produz um certo mal-estar, que afinal é o de todo sujeito que, sem abrir mão de seus privilégios, reconhece que a situação social brasileira é insustentável.
O sentimentalismo de "Gente Humilde" pode parecer ingênuo aos olhos de hoje, mas se beneficia de maior coerência afetiva: "E aí me dá uma tristeza no meu peito/ Feito um despeito de eu não ter como lutar/ E eu que não creio, peço a Deus por minha gente,/ É gente humilde, que vontade de chorar".
Em vez de pedir a Deus por "minha gente", "Subúrbio" pergunta cruamente "que futuro tem/ Aquela gente toda". Intensificando-se ao longo das últimas décadas, a separação espacial e social parece tornar bem mais vagos os laços de solidariedade humana entre poeta e tema. Mas... por que o tema?
"Perdido em ti", conclui Chico, "eu ando em roda", e reescreve os versos de "Águas de Março", símbolo da impotência de esquerda nos anos 70: "É pau, é pedra/ é fim de linha". Como se, sobre "aquela gente", já não houvesse o que dizer. Eles que tomem a palavra.
Fim de linha? De algum modo, sim. A canção só poderia, desse ponto de vista, recolher-se ao silêncio. Felizmente, contudo, depois do fim da linha, há mais 11 faixas no disco de Chico.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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