São Paulo, sábado, 14 de junho de 2008

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Coetzee analisa "autoridade" de opiniões

É lançado "Diário de um Ano Ruim", último livro do Prêmio Nobel J.M. Coetzee, que tem como personagem um escritor idoso

Livro é estruturado como uma coleção de 31 reflexões ("Opiniões Fortes'), seguidas de outras 24 opiniões brandas ("Segundo Diário")


Yoshiko Kusano - 27.mai.06/Keystone
O autor sul-africano J. M. Coetzee, destaque da Flip do ano passado

MARCOS STRECKER
DA REPORTAGEM LOCAL

Quem esteve na Festa Literária Internacional de Parati (Flip) em julho de 2007 já conhecia alguns trechos de "Diário de um Ano Ruim". J. M. Coetzee, Prêmio Nobel de Literatura e duas vezes ganhador do Booker Prize (um dos mais influentes prêmios literários de língua inglesa), explicou para o público o tema de sua última obra e em seguida leu trechos, as reflexões de um famoso escritor sul-africano radicado na Austrália -uma descrição do próprio autor, ainda que ele mascare dados biográficos no livro, como a idade.
"Diário...", que agora chega às livrarias, é estruturado como uma coleção de 31 reflexões ("Opiniões Fortes"), que são ensaios seguidos de um conjunto de 24 opiniões brandas ("Segundo Diário").
Isso em tese é a razão de ser do livro. Já o que se passa abaixo dessas reflexões (coincidentes ou não com posições já defendidas por Coetzee) é mais interessante. Sob os textos, as páginas trazem os pensamentos do escritor sobre uma mulher sensual que conheceu numa lavanderia e que contratou como sua secretária. E, ainda abaixo dessa narrativa, há a voz da própria mulher, lisonjeada e ao mesmo repugnada por um velho famoso e solitário, por quem desenvolve um afeto frágil que evolui à medida que as páginas avançam (e o leitor precisa optar pela melhor forma de seguir a leitura).
É um livro "que reflete sobre a natureza das opiniões e, em particular, sobre a questão da autoridade das opiniões", Coetzee disse em entrevista à Folha. "É um livro sobre um homem que é convidado a contribuir com suas opiniões para um livro de opiniões. (...) Diferente de outras formas de narrativa que praticou até agora. É essa característica dual das opiniões -são tanto as opiniões do autor quanto de se expressar opiniões, ao mesmo tempo- que está no cerne do livro", afirmou o escritor.

Jogo polifônico
O jogo seco e polifônico é uma fórmula recorrente do autor de "Elizabeth Costello". E jogo é uma palavra apropriada para quem tem Beckett como uma de suas grandes influências. A matemática do livro (para lembrar a origem acadêmica do autor) não inclui verve nem espirituosidade. É sutil e seca. "C", o personagem, recorre aos gregos para inspiração e à língua alemã para explicar as sutilezas: "Meinungen" (que para ele são opiniões sujeitas a flutuações de humor) em contraste com as "Ansichten" (opiniões firmes, repensadas).
Híbrida, a obra transita entre reflexões apuradas, o prosaico e esbarra no francamente desinteressante (alguém está interessado em John Howard e na política interna da Austrália?). Reflete sofre a natureza da política, cita Hobbes, o autor de "Leviatã", mas também retoma o ativismo vegetariano, um tema recorrente. Aborda pedofilia, design inteligente, eleições no Canadá, a concessão de asilo a estrangeiros e sobre a eventual desculpa que os australianos deveriam pedir aos aborígenes.

Ironia
A ironia dá o tom. "C", por exemplo, escreve suas opiniões para um editor alemão. Conveniente, ficamos sabendo no livro, já que Alemanha e França são dois países ainda reverentes a idosos de cabelos brancos que se parecem com sábios, diferentemente do mundo anglo-saxão -que leva a sério o que os autores estão escrevendo.
Crítico prolífico de outros escritores, resenhista habitual da "New York Review of Books", Coetzee é econômico em opiniões sobre si mesmo. Em "Diário...", por exemplo, "C" comenta a postura perigosa de Harold Pinter ao discursar contra a Guerra do Iraque quando recebeu o Nobel ("é preciso ter coragem para falar como falou. O que ele fez pode ser temerário, mas não é covarde"). Mas Coetzee declinou de comentar para a Folha seu próprio papel como autor no debate público.
Sobre sua experiência em Paraty (RJ), no entanto, o sul-africano não poupou elogios, ainda que tenha se recusado a dar entrevistas ou debater com outros escritores em 2007. "Fiquei muito impressionado com a Flip, em particular pelo poder de atração que a festa exerce sobre os jovens. (...) Fiquei muito impressionado pelos debates e a atenção com a qual a platéia os acompanhava."
E "Do Envelhecimento", a opinião branda nº 09? O assunto parece tocar o autor. Responde Coetzee: "Há uma qualidade paradoxal no destino de vários artistas à medida que envelhecem: tendo passado a vida inteira eclipsando sua personalidade no interesse de sua arte, ao ponto em que resta quase nenhuma personalidade, são transformados pela mídia em "personalidades" e instados a dar opiniões."
Sim, é uma opinião.


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