São Paulo, sábado, 14 de junho de 2008

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Crítica/"King Kong e Cervejas"

Estréia de Corsaletti em contos mesclam o banal e o poético

Em "King Kong e Cervejas", escritor paulista recorda infância em cidade pequena do interior, mas com realismo sem pose

ALCIDES VILLAÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Num de seus poemas, Oswald de Andrade quer um amor que seja simples como um largo de igreja; já Mário de Andrade achava que um largo de igreja é algo bastante complicado.
Lembrei-me dessa divergência quanto à singeleza ou à densidade da vida provinciana ao ler estas nove histórias curtas que marcam a estréia de Fabrício Corsaletti (ótimo poeta) como narrador.
Ele se move agora numa cativante prosa circular, cujo centro está no eu que narra seu pleno envolvimento com a família, os amigos e os acontecimentos da infância e da adolescência na cidadezinha interiorana.
Tudo parece muito simples, ameaçando trivialidades; e, ao cabo, tudo é muito sugestivo, apontando para a significação silenciada e funda das vivências cotidianas.
Num realismo direto, impressivo e sem pose, difícil de alcançar, a prosa de Corsaletti incorpora a lição de Manuel Bandeira sobre o papel decisivo da atenção aos detalhes sensíveis e da desafiante transparência que lhes deve a linguagem.
As narrativas no pretérito dão viva presença ao menino inquisitivo e livre na cidadezinha e nos seus contornos bucólicos; ao adolescente sabido e cervejeiro dos botecos e das investidas amorosas; e ao moço, já da capital, que retorna para visitar "o começo do mundo". Esse retorno, mais que episódico, é a atitude-matriz do narrador de todas as histórias, que sabe como expurgar o saudosismo literário dos filhos pródigos.

Humanidade comum
Corsaletti é um obsessivo perseguidor da verdade substancial de cada uma de suas experiências; para atingi-la, cola-se nelas com uma linguagem que tanto dá conta do impacto imediato dos acontecimentos de ontem como de sua absorção pelo sujeito que agora os revive.
Se o menino já se preocupava com a sinceridade, a sua e a dos outros, o narrador adulto atualiza essa qualidade ética como parâmetro inquieto de sua linguagem. As narrativas, aparentemente avulsas, revelam a unidade de origem e articulam no conjunto a história de uma formação.
Na contramão das tantas "crises da modernidade", diagnosticadas como "definitivas" no que toca à constituição do sujeito, às experiências pessoais e à própria possibilidade de narrar, as histórias de Corsaletti dão voz à humanidade comum de um indivíduo, de sua família, de seus amigos, de sua província, de um jeito de contar. Humanidade comum, que exige especial expressão.

Poesia natural
A poesia, aqui e ali convocada por frase súbita e luminosa, aparentemente fugindo ao prosaico, surge como parte natural das primitivas percepções. Mas o mundo, nestas histórias, é sobretudo prosa que flui. Culpa da infância boa, da ordem generosa da família singular e afetiva, da magia dos largos de igreja. Cada prazer e cada frustração das personagens animadas nessa órbita remetem a um plano de intensa sensibilização, da fecunda nostalgia que o narrador se determina a não representar, para deixar soar em surdina.
Numa das histórias, o menino leva desvantagem na briga, sangra e grita para todos, patético e inconformado: "Eu vou inventar uma luta! Eu vou inventar uma luta!". E não é que inventou?


ALCIDES VILLAÇA é professor de literatura brasileira na USP


KING KONG E CERVEJAS
Autor:
Fabrício Corsaletti
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 33 (104 págs.)
Avaliação: ótimo



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