|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/"King Kong e Cervejas"
Estréia de Corsaletti em contos mesclam o banal e o poético
Em "King Kong e Cervejas", escritor paulista recorda infância em cidade pequena do interior, mas com realismo sem pose
ALCIDES VILLAÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Num de seus poemas,
Oswald de Andrade
quer um amor que seja
simples como um largo de igreja; já Mário de Andrade achava
que um largo de igreja é algo
bastante complicado.
Lembrei-me dessa divergência quanto à singeleza ou à densidade da vida provinciana ao
ler estas nove histórias curtas
que marcam a estréia de Fabrício Corsaletti (ótimo poeta) como narrador.
Ele se move agora numa cativante prosa circular, cujo centro está no eu que narra seu pleno envolvimento com a família,
os amigos e os acontecimentos
da infância e da adolescência na
cidadezinha interiorana.
Tudo parece muito simples,
ameaçando trivialidades; e, ao
cabo, tudo é muito sugestivo,
apontando para a significação
silenciada e funda das vivências
cotidianas.
Num realismo direto, impressivo e sem pose, difícil de
alcançar, a prosa de Corsaletti
incorpora a lição de Manuel
Bandeira sobre o papel decisivo
da atenção aos detalhes sensíveis e da desafiante transparência que lhes deve a linguagem.
As narrativas no pretérito
dão viva presença ao menino
inquisitivo e livre na cidadezinha e nos seus contornos bucólicos; ao adolescente sabido e
cervejeiro dos botecos e das investidas amorosas; e ao moço,
já da capital, que retorna para
visitar "o começo do mundo".
Esse retorno, mais que episódico, é a atitude-matriz do narrador de todas as histórias, que
sabe como expurgar o saudosismo literário dos filhos pródigos.
Humanidade comum
Corsaletti é um obsessivo
perseguidor da verdade substancial de cada uma de suas experiências; para atingi-la, cola-se nelas com uma linguagem
que tanto dá conta do impacto
imediato dos acontecimentos
de ontem como de sua absorção
pelo sujeito que agora os revive.
Se o menino já se preocupava
com a sinceridade, a sua e a dos
outros, o narrador adulto atualiza essa qualidade ética como
parâmetro inquieto de sua linguagem. As narrativas, aparentemente avulsas, revelam a unidade de origem e articulam no
conjunto a história de uma formação.
Na contramão das tantas
"crises da modernidade", diagnosticadas como "definitivas"
no que toca à constituição do
sujeito, às experiências pessoais e à própria possibilidade
de narrar, as histórias de Corsaletti dão voz à humanidade comum de um indivíduo, de sua
família, de seus amigos, de sua
província, de um jeito de contar. Humanidade comum, que
exige especial expressão.
Poesia natural
A poesia, aqui e ali convocada
por frase súbita e luminosa,
aparentemente fugindo ao prosaico, surge como parte natural
das primitivas percepções.
Mas o mundo, nestas histórias, é sobretudo prosa que flui.
Culpa da infância boa, da ordem generosa da família singular e afetiva, da magia dos largos de igreja. Cada prazer e cada frustração das personagens
animadas nessa órbita remetem a um plano de intensa sensibilização, da fecunda nostalgia que o narrador se determina a não representar, para deixar soar em surdina.
Numa das histórias, o menino leva desvantagem na briga,
sangra e grita para todos, patético e inconformado: "Eu vou
inventar uma luta! Eu vou inventar uma luta!". E não é que
inventou?
ALCIDES VILLAÇA é professor de literatura
brasileira na USP
KING KONG E CERVEJAS
Autor: Fabrício Corsaletti
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 33 (104 págs.)
Avaliação: ótimo
Texto Anterior: Crítica/"O Fazedor": Borges aproxima invenção e forma histórica Próximo Texto: Crítica/"Nada": Espanhola retrata terror social do pós-guerra Índice
|