São Paulo, domingo, 14 de junho de 2009

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No rastro de Cacilda

Folha visita cidade natal de Cacilda Becker, grande atriz do teatro, morta há 40 anos

Fredi Kleemann


LUCAS NEVES
ENVIADO ESPECIAL
A PIRASSUNUNGA (SP)


Na parede do supermercado Jaú Serve, em cima da ala dos limões cravo e tahiti e dos abacaxis pérola, uma frase escrita em letras garrafais chama atenção: "Sou um instrumento da minha arte, sou meu próprio violino". São palavras da atriz Cacilda Becker (1921-1969), filha ilustre de Pirassununga (213 km ao norte de São Paulo), lembrada de modo inusitado pelos conterrâneos neste 40º aniversário de sua morte.
Há exatas quatro décadas, o poeta Carlos Drummond de Andrade emendava a gramática para dar a notícia: "Morreram Cacilda Becker".
No supermercado pirassununguense, a homenagem inclui nove retratos daquela que é tida por muitos como patrona do moderno teatro brasileiro -tanto pela versatilidade em cena quanto por sua atuação como líder de classe e artífice da profissionalização do ofício.
Atualmente, pouca gente sabe disso na cidade de cerca de 70 mil habitantes, casa da Esquadrilha da Fumaça e de uma célebre cachaça. Especialmente para as gerações nascidas depois da morte dela, Cacilda é pouco mais do que a personalidade que empresta o nome ao teatro municipal e ao conservatório de Pirassununga.
Uma exceção é William Berck, 25, que trabalha no frigorífico do dito supermercado:
"Comecei a me interessar por ela com 15, 16 anos. Uma de suas marcas foi a perseverança, a forma como enfrentou o governo [deu abrigo a colegas perseguidos e apresentou na íntegra peças em que a censura fizera cortes]. Tenho em casa um dos filmes que fez, "Floradas na Serra" (1954), e um documentário sobre sua vida", conta o açougueiro, antes de citar três peças do currículo da atriz.
O documentário que Berck tem na estante é "Profissão: Atriz", de Israel Foguel, 54, diretor do municipal e escritor.
Sem jamais ter visto Cacilda em cena, ele conduz um esforço solitário para manter viva sua memória: dá palestras sobre a atriz, realiza um festival anual de teatro com o nome dela e, para marcar os 40 anos de sua morte, organizou uma programação com exposição de fotos e peça sobre a vida de Cacilda.
Enciclopédia cacildiana, Foguel coleciona anedotas de família ("na infância, morando na casa dos avós, ela e as irmãs pegavam mangas só do alto do pé, porque a avó contava diariamente quantas restavam"), truques de coxia ("em "Pega-Fogo", ela amarrava o busto com esparadrapo para parecer um garoto") e datas, muitas delas.

Pouco lembrada na escola
Como 1931, ano em que Cacilda cursa a 2ª série no Grupo Escolar Coronel Franco. Na escola, os registros empoeirados não trazem mais seu nome. Tampouco há livros sobre a atriz na biblioteca.
"O teatro é pouco valorizado em nosso país", parece justificar a diretora, Gláucia Elisabete Duarte, 49, diante da procura infrutífera nas estantes.
Entretanto, há por ali quem ainda vista a camisa das artes cênicas. De Cacilda, o garoto João Otávio Furlan, 13, sabe "mais a parte trágica, que ela pediu uma pausa [na peça "Esperando Godot'] porque estava passando mal [teve um derrame]". Depois de descobrir o teatro em "Os Saltimbancos", ele resolveu se arriscar na dramaturgia com uma adaptação de Monteiro Lobato.
Hoje, o roteirista oficial dos casamentos juninos da escola, também diretor e ator, diz ter sete textos prontos, "tudo muito simples". A seu modo, leva adiante a herança de Cacilda.
As casas em que a atriz viveu em Pirassununga, que poderiam abrigar museus dedicados a ela, não existem mais. Uma deu lugar a um prédio de dois andares, endereço de uma sapataria, uma alfaiataria e um escritório de advocacia. A outra se transformou numa loja de eletrodomésticos.
Ao longo dos anos, a família se espalhou pelo Estado de São Paulo. Os filhos, Luiz Carlos e Clara, moram na capital. O último marido, Walmor Chagas, em Guaratinguetá. A irmã mais nova, a também atriz Cleyde Yáconis, em Jordanésia.

Silêncio sobre o pai
Em Pirassununga, ficaram alguns primos distantes, como Mila Cassiano, que se lembra de uma Cacilda "muito dona da situação", zelosa dos filhos, adepta do fumo e amante de uma boa caipirinha.
Quando chegava à cidade para descansar do teatro paulistano, diz Mila, a atriz gostava de ir à Cachoeira das Emas e não costumava falar de trabalho. Sobre o pai, Edmundo, que deixara a família quando Cacilda ainda era criança, ela mantinha silêncio absoluto.
"É uma pena que os jovens de hoje não saibam quem foi Cacilda", lamenta Mila, no fim da conversa. Se é verdade que não sabem, também é que parecem o grupo mais interessado em reverter a situação.
Numa noite com entrada liberada no municipal de Pirassununga, a molecada (um pouco ruidosa, vá lá) constitui mais de 90% da plateia de "Meu Abajur de Injeção", monólogo em que Luciana Carnieli costura cartas e entrevistas de Cacilda para delinear sua personalidade e trabalhos mais marcantes.
Na mesma hora, no teatro da Academia da Força Aérea, apresenta-se outro espetáculo ligado a Cacilda, "Donana". No fim dos anos 60, então dramaturgo iniciante, Ronaldo Ciambroni escreveu essa comédia dramática sobre uma senhora solitária pensando na atriz para o papel. Entregou-lhe o texto uma semana antes de ela sofrer o derrame que a tiraria de cena.
Diante dos fatos, resolveu assumir o personagem: aproveitou uma visita protocolar ao odontologista para tirar todos os dentes e se metamorfosear na velhinha. "Imersão" que Cacilda não teria reprovado.
Os palcos em que a atriz pisou de fato ficaram no passado de Pirassununga. O Polytheama que viu sua primeira dança agora é uma loja em que se vendem TVs e sofás. O Odeon, em que apresentou em 59 o histórico "Pega-Fogo", virou banco.
Ao lado, no Jossandra, que ela inaugurou em 61 com "...Em Moeda Corrente do País", hoje funciona uma igreja evangélica. O palco é o mesmo. Entre ele e a plateia, há uma bateria e um teclado. Instrumento de sua arte, Cacilda talvez tenha achado um jeitinho de ficar por ali.


NO BLOG - Veja fotos de Cacilda Becker feitas por Fredi Kleemann cacilda.folha.blog.uol.com.br




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