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DISCO - LANÇAMENTOS
Cecilia Bartoli canta esbanjando saúde musical
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha
"Por meio da música, as paixões
gozam a si mesmas", escreveu
Nietzsche em "Além do Bem e do
Mal" (1886). É quase o contrário
do que pensava Oscar Wilde: "As
verdades metafísicas são as verdades das máscaras" ("A Decadência da Mentira e Outros Ensaios").
As frases são inconciliáveis, mas
juntas as duas resumem o sentido
desse repertório mal conhecido e
malfalado que é o bel canto.
Resgatadas por Cecilia Bartoli,
em seu novo CD, as canções de
Rossini, Donizetti e Bellini só têm
a ganhar com a distância de 150
anos, que dissolve ou dignifica as
marcas de época. E só têm a ganhar com essa intérprete predestinada, grande virtuose do estilo
médio, entre a paixão e a máscara.
Não existe até hoje uma edição
integral das canções de Rossini
(1792-1868). Das mais de 250 canções de Donizetti (1797-1848), só
cerca de 30 são acessíveis em edições modernas. E quem conhece
as canções de Bellini (1801-35) -
canções de fato, não árias de ópera?
Em meados do século passado, o
compositor Schumann já desprezava o canto lírico italiano como
"o grito de batalha do diletantismo", e por mais de cem anos essa
música simplesmente não foi levada a sério pelos ouvintes que se levavam a sério.
Mas hoje não se disputa a influência do bel canto sobre a poética musical de vanguardistas românticos, como Chopin, Liszt e
Berlioz, para não falar em Wagner.
Entre a paixão e a máscara, fica
esse território nebuloso, sempre
sedutor, de uma "arte popular",
em que os dois termos têm pesos
iguais. As canções do bel canto italiano estão para a alta cultura musical do romantismo como as valsas de Strauss para as sinfonias de
Brahms, ou a música de Gershwin
para a de Schoenberg.
O caso de Bellini é um tanto especial: um aristocrata da melodia,
traduzindo a ornamentação de
Rossini e a energia de Donizetti
para um novo estilo de simplicidade e intensidade.
Os três compositores sofreram
mais do que ninguém com o caráter kitsch do canto lírico, que encontra ali sua apoteose. Estimulada pelo acompanhamento exemplarmente sóbrio e sobriamente
arrebatado de James Levine, Cecilia Bartoli soa neste disco como a
cantora do bem-estar e da boa ironia, esbanjando saúde musical.
Desde sua premiada gravação de
"La Cenerentola", há quatro
anos, e de outro disco inteiro dedicado a heroínas de Rossini, Bartoli
vem sendo vista como a maior intérprete de coloratura da atualidade.
Aos 32 anos, e enveredando agora pela música antiga (em concertos e gravações com os maestros
Christopher Hogwood e Nikolaus
Harnoncourt), ela retorna a Rossini com o mesmo entusiasmo de
antes, mas compreensão ainda
mais refinada.
Sua interpretação faz cada nota e
cada ornamento vibrar livre, sem
nenhuma ingenuidade: tudo agora
soa como uma segunda primeira
vez.
É a força animadora da melodia
que dá vida e sentido aos pastores,
ninfas, Dafnes, Elviras, barqueiros, borboletas e rosas dessa poesia que, para nós, já perdeu toda a
poesia. "Malinconia, ninfa gentile/la vita mia consacro a te": uma
frase dessas, musicada por Bellini
em ritmo ternário (quase uma valsa) e uma simples escala descendente, é tratada por Bartoli como
um brevíssimo e raro exemplar do
drama romântico, merecendo
atenção e paixão a cada nota.
O "m" soa antes da vogal, num
prelúdio de ansiedade, que geme e
treme até a quarta sílaba. O "n"
serve de suspiro, que cresce na
"ninfa" e se quebra num sofrido
"g". "La Vita" começa quase
inaudível, mas orientada para o
"i" de "mia", que se deixa espetar pelo "con" perfeitamente afinado e perfeitamente isolado, uma
quinta acima. A frase só se acalma
em "a te". Tudo isso leva exatamente oito segundos.
O disco multiplica essa arte 505
vezes: mais de uma hora desse drama de minúcias. Não são minúcias: é a música, extraída de uma
mina improvável.
Para o especialista, o CD tem valor musicológico também. O "Bolero" de Rossini, por exemplo
-que faz pensar em Carmen,
mais do que em Ravel-, permanece inédito em partitura até hoje.
As canções napolitanas de Donizetti, com versos em dialeto, têm
sabor especial, sublinhado pela
simpatia dessa cantora romana.
E uma peça como "Torna, Vezzosa Filide", de Bellini, a mais
longa do CD e a única de natureza
mais claramente operística, só não
é cantada com frequência em recitais porque as outras cantoras não
a conhecem ou não estão à altura.
Depois de ouvir um disco desses,
pode-se inverter a frase de Nietzsche, citada no início. Não são as
paixões que gozam a si mesmas
por meio da música, mas a música
que descobre de novo uma verdade própria em plena mascarada
das paixões.
Os compositores estavam lá antes de nós, entenderam tudo por
antecipação e só precisavam de intérpretes como Cecilia Bartoli para
nos fazer entender, de novo, o que
todo mundo já sabe. Verdades
metafísicas, verdades das máscaras: não é para isso que serve uma
canção?
Disco: An Italian Songbook
Intérprete: Cecilia Bartoli
Pianista: James Levine
Lançamento: Decca
Quanto: R$ 18, em média
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