São Paulo, terça, 14 de julho de 1998

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DISCO - LANÇAMENTOS
Cecilia Bartoli canta esbanjando saúde musical

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

"Por meio da música, as paixões gozam a si mesmas", escreveu Nietzsche em "Além do Bem e do Mal" (1886). É quase o contrário do que pensava Oscar Wilde: "As verdades metafísicas são as verdades das máscaras" ("A Decadência da Mentira e Outros Ensaios").
As frases são inconciliáveis, mas juntas as duas resumem o sentido desse repertório mal conhecido e malfalado que é o bel canto.
Resgatadas por Cecilia Bartoli, em seu novo CD, as canções de Rossini, Donizetti e Bellini só têm a ganhar com a distância de 150 anos, que dissolve ou dignifica as marcas de época. E só têm a ganhar com essa intérprete predestinada, grande virtuose do estilo médio, entre a paixão e a máscara.
Não existe até hoje uma edição integral das canções de Rossini (1792-1868). Das mais de 250 canções de Donizetti (1797-1848), só cerca de 30 são acessíveis em edições modernas. E quem conhece as canções de Bellini (1801-35) - canções de fato, não árias de ópera?
Em meados do século passado, o compositor Schumann já desprezava o canto lírico italiano como "o grito de batalha do diletantismo", e por mais de cem anos essa música simplesmente não foi levada a sério pelos ouvintes que se levavam a sério.
Mas hoje não se disputa a influência do bel canto sobre a poética musical de vanguardistas românticos, como Chopin, Liszt e Berlioz, para não falar em Wagner.
Entre a paixão e a máscara, fica esse território nebuloso, sempre sedutor, de uma "arte popular", em que os dois termos têm pesos iguais. As canções do bel canto italiano estão para a alta cultura musical do romantismo como as valsas de Strauss para as sinfonias de Brahms, ou a música de Gershwin para a de Schoenberg.
O caso de Bellini é um tanto especial: um aristocrata da melodia, traduzindo a ornamentação de Rossini e a energia de Donizetti para um novo estilo de simplicidade e intensidade.
Os três compositores sofreram mais do que ninguém com o caráter kitsch do canto lírico, que encontra ali sua apoteose. Estimulada pelo acompanhamento exemplarmente sóbrio e sobriamente arrebatado de James Levine, Cecilia Bartoli soa neste disco como a cantora do bem-estar e da boa ironia, esbanjando saúde musical.
Desde sua premiada gravação de "La Cenerentola", há quatro anos, e de outro disco inteiro dedicado a heroínas de Rossini, Bartoli vem sendo vista como a maior intérprete de coloratura da atualidade.
Aos 32 anos, e enveredando agora pela música antiga (em concertos e gravações com os maestros Christopher Hogwood e Nikolaus Harnoncourt), ela retorna a Rossini com o mesmo entusiasmo de antes, mas compreensão ainda mais refinada.
Sua interpretação faz cada nota e cada ornamento vibrar livre, sem nenhuma ingenuidade: tudo agora soa como uma segunda primeira vez.
É a força animadora da melodia que dá vida e sentido aos pastores, ninfas, Dafnes, Elviras, barqueiros, borboletas e rosas dessa poesia que, para nós, já perdeu toda a poesia. "Malinconia, ninfa gentile/la vita mia consacro a te": uma frase dessas, musicada por Bellini em ritmo ternário (quase uma valsa) e uma simples escala descendente, é tratada por Bartoli como um brevíssimo e raro exemplar do drama romântico, merecendo atenção e paixão a cada nota.
O "m" soa antes da vogal, num prelúdio de ansiedade, que geme e treme até a quarta sílaba. O "n" serve de suspiro, que cresce na "ninfa" e se quebra num sofrido "g". "La Vita" começa quase inaudível, mas orientada para o "i" de "mia", que se deixa espetar pelo "con" perfeitamente afinado e perfeitamente isolado, uma quinta acima. A frase só se acalma em "a te". Tudo isso leva exatamente oito segundos.
O disco multiplica essa arte 505 vezes: mais de uma hora desse drama de minúcias. Não são minúcias: é a música, extraída de uma mina improvável.
Para o especialista, o CD tem valor musicológico também. O "Bolero" de Rossini, por exemplo -que faz pensar em Carmen, mais do que em Ravel-, permanece inédito em partitura até hoje.
As canções napolitanas de Donizetti, com versos em dialeto, têm sabor especial, sublinhado pela simpatia dessa cantora romana.
E uma peça como "Torna, Vezzosa Filide", de Bellini, a mais longa do CD e a única de natureza mais claramente operística, só não é cantada com frequência em recitais porque as outras cantoras não a conhecem ou não estão à altura.
Depois de ouvir um disco desses, pode-se inverter a frase de Nietzsche, citada no início. Não são as paixões que gozam a si mesmas por meio da música, mas a música que descobre de novo uma verdade própria em plena mascarada das paixões.
Os compositores estavam lá antes de nós, entenderam tudo por antecipação e só precisavam de intérpretes como Cecilia Bartoli para nos fazer entender, de novo, o que todo mundo já sabe. Verdades metafísicas, verdades das máscaras: não é para isso que serve uma canção?

Disco: An Italian Songbook Intérprete: Cecilia Bartoli
Pianista: James Levine
Lançamento: Decca
Quanto: R$ 18, em média



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