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Vidas amargas
Em seu primeiro livro, William Saroyan faz retrato árido sobre os imigrantes nos EUA
JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA
Foi em 1939 que Sebastian Sampas introduziu seu amigo Jean-Louis à literatura de William Saroyan, emprestando-lhe "O Jovem Audaz no Trapézio Voador",
primeiro livro do escritor nascido
na Califórnia em 1908. O adolescente Jean-Louis, impressionado
com a liberdade narrativa e a força daqueles personagens à deriva,
afinal obteve a confirmação das
chances reais de uma narrativa
calcada na coloquialidade das
ruas e distante do apego à técnica
predominante na literatura do período. Mais tarde, em 1957, com a
publicação de seu segundo romance, Jean-Louis também daria
sua contribuição para revolucionar a prosódia americana. O título
do livro era "On the Road" e
àquela altura o seu autor já assinava com o nome com o qual ficaria
conhecido: Jack Kerouac.
Mas a influência de Saroyan não
é seminal apenas nos EUA. Em
depoimento à revista "Cult", Caetano Veloso fala sobre o impacto
que a leitura da obra também lhe
causou e de como sua ousadia formal transgredia todas as convenções narrativas: "Saroyan abria
comentários como se estivesse falando com o leitor, contava a história aos pedaços, tomava liberdades na estruturação da narrativa, coisas que me impressionaram muito".
Distante das estantes brasileiras
há cerca de 50 anos, afinal "O Jovem Audaz..." novamente pode
ser lido em português, desta vez
em ótima tradução de Fausto
Wolff. "Li "O Jovem Audaz" aos 16
anos, na tradução de Mário Quintana, e depois voltei a pensar nele,
quando criei o título do meu primeiro romance, "O Acrobata Pede
Desculpas e Cai"." Wolff continua:
"Eu meço literatura pela sinceridade, e Saroyan é um dos escritores mais sinceros jamais surgidos.
Ele é contemporâneo de John
Fante, e os dois compartilham essa ausência de medo em mostrar
sua humanidade".
Filho de imigrantes armênios
plantadores de uva no San Joaquin Valley, William Saroyan retratou de maneira otimista a condição nômade de seu povo e a vida árdua durante a Grande Depressão. A San Francisco do entreguerras é o principal palco de
suas histórias, mas ele explora
também as experiências da infância e suas diversas e episódicas
profissões, como a de gerente em
uma companhia de telégrafos.
Com a publicação em 1934 de
"O Jovem Audaz", Saroyan transpôs para a literatura americana a
tradição inaugurada pelo mítico
romance "Fome", do Prêmio Nobel de 1920, Knut Hamsun. Publicado em 1890, o livro mais conhecido do autor norueguês é um objeto estranho à literatura do século 19, com seu enredo rarefeito
conduzido pelas imprecações niilistas de um jovem escritor faminto à beira de um ataque de nervos.
No livro inaugural de Saroyan
igualmente ouvimos as lamúrias
de um escritor neófito, porém
desprovidas da arrogância e do
auto-flagelo presentes na voz um
tanto histérica do narrador de
Hamsun. Em "O Jovem Audaz", o
que temos é uma imensa compaixão pelos tipos que surgem a cada
história e a cada esquina dobrada
de San Francisco. Barbeiros,
bookmakers, prostitutas, vagabundos, desempregados, todos
atraem o jovem Saroyan com suas
vidas miseráveis, despertando-lhe a solidariedade em uma ficção
com raízes profundas no patético
e -por que não?- no sentido
ético da mais pura e candente observação do cotidiano.
É através de seu olhar que Saroyan procura salvar seus personagens da penúria física e espiritual
de um tempo deplorável. E chineses, assírios, armênios, irlandeses
ou africanos pululam por essas
páginas, explorando pela primeira vez na literatura americana as
instáveis condições de vida dos
imigrantes no início do século 20
e dando início a outra tradição, a
da narrativa andarilha, posteriormente continuada pelo ítalo-americano John Fante, pelo franco-canadense Jack Kerouac e pelo
alemão Charles Bukowski.
Depois de obter sucesso com a
venda de seus livros de ficção e
iniciar uma prolífica produção
para o teatro, em 39 o escritor recebeu o Pulitzer por sua peça
"The Time of Your Life". Ganhou,
mas preferiu não levar o dinheiro,
alegando que "o comércio não deveria julgar as artes".
Impregnados de humanismo
pacifista (um tanto pré-hippie),
tal característica de seus livros
motivaram a ascensão e queda de
Saroyan, acusado no final da vida
de ter "perdido a mão" em suas
preocupações anti-belicistas,
muitas vezes confundidas com
mero excesso de açúcar.
Com tendência a também exagerar na bebida e uma predileção
particularmente cara pelo jogo, o
escritor ainda foi pioneiro em escrever sitcoms para a TV, criando
ao menos uma série de sucesso,
"Playhouse 90".
Depois de viver alguns anos em
Paris, doente de câncer, Saroyan
morreu em Fresno, sua cidade natal, em 1981. Cinco dias antes,
convocou uma coletiva para dizer
que "todo mundo tem de morrer,
porém eu sempre acreditei que
uma exceção seria feita no meu
caso. E agora?". Não há dúvida
que o malandro sustentava sua
galhardia mesmo nas condições
mais adversas.
Joca Reiners Terron é autor de "Hotel
Hell" (2003), entre outros livros.
O JOVEM AUDAZ NO TRAPÉZIO
VOADOR E OUTRAS HISTÓRIAS. Autor:
William Saroyan. Editora: Paz e Terra.
Quanto: R$26 (226 págs.).
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