São Paulo, sábado, 14 de agosto de 2004

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Vidas amargas

Em seu primeiro livro, William Saroyan faz retrato árido sobre os imigrantes nos EUA

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Foi em 1939 que Sebastian Sampas introduziu seu amigo Jean-Louis à literatura de William Saroyan, emprestando-lhe "O Jovem Audaz no Trapézio Voador", primeiro livro do escritor nascido na Califórnia em 1908. O adolescente Jean-Louis, impressionado com a liberdade narrativa e a força daqueles personagens à deriva, afinal obteve a confirmação das chances reais de uma narrativa calcada na coloquialidade das ruas e distante do apego à técnica predominante na literatura do período. Mais tarde, em 1957, com a publicação de seu segundo romance, Jean-Louis também daria sua contribuição para revolucionar a prosódia americana. O título do livro era "On the Road" e àquela altura o seu autor já assinava com o nome com o qual ficaria conhecido: Jack Kerouac.
Mas a influência de Saroyan não é seminal apenas nos EUA. Em depoimento à revista "Cult", Caetano Veloso fala sobre o impacto que a leitura da obra também lhe causou e de como sua ousadia formal transgredia todas as convenções narrativas: "Saroyan abria comentários como se estivesse falando com o leitor, contava a história aos pedaços, tomava liberdades na estruturação da narrativa, coisas que me impressionaram muito".
Distante das estantes brasileiras há cerca de 50 anos, afinal "O Jovem Audaz..." novamente pode ser lido em português, desta vez em ótima tradução de Fausto Wolff. "Li "O Jovem Audaz" aos 16 anos, na tradução de Mário Quintana, e depois voltei a pensar nele, quando criei o título do meu primeiro romance, "O Acrobata Pede Desculpas e Cai"." Wolff continua: "Eu meço literatura pela sinceridade, e Saroyan é um dos escritores mais sinceros jamais surgidos. Ele é contemporâneo de John Fante, e os dois compartilham essa ausência de medo em mostrar sua humanidade".
Filho de imigrantes armênios plantadores de uva no San Joaquin Valley, William Saroyan retratou de maneira otimista a condição nômade de seu povo e a vida árdua durante a Grande Depressão. A San Francisco do entreguerras é o principal palco de suas histórias, mas ele explora também as experiências da infância e suas diversas e episódicas profissões, como a de gerente em uma companhia de telégrafos.
Com a publicação em 1934 de "O Jovem Audaz", Saroyan transpôs para a literatura americana a tradição inaugurada pelo mítico romance "Fome", do Prêmio Nobel de 1920, Knut Hamsun. Publicado em 1890, o livro mais conhecido do autor norueguês é um objeto estranho à literatura do século 19, com seu enredo rarefeito conduzido pelas imprecações niilistas de um jovem escritor faminto à beira de um ataque de nervos.
No livro inaugural de Saroyan igualmente ouvimos as lamúrias de um escritor neófito, porém desprovidas da arrogância e do auto-flagelo presentes na voz um tanto histérica do narrador de Hamsun. Em "O Jovem Audaz", o que temos é uma imensa compaixão pelos tipos que surgem a cada história e a cada esquina dobrada de San Francisco. Barbeiros, bookmakers, prostitutas, vagabundos, desempregados, todos atraem o jovem Saroyan com suas vidas miseráveis, despertando-lhe a solidariedade em uma ficção com raízes profundas no patético e -por que não?- no sentido ético da mais pura e candente observação do cotidiano.
É através de seu olhar que Saroyan procura salvar seus personagens da penúria física e espiritual de um tempo deplorável. E chineses, assírios, armênios, irlandeses ou africanos pululam por essas páginas, explorando pela primeira vez na literatura americana as instáveis condições de vida dos imigrantes no início do século 20 e dando início a outra tradição, a da narrativa andarilha, posteriormente continuada pelo ítalo-americano John Fante, pelo franco-canadense Jack Kerouac e pelo alemão Charles Bukowski.
Depois de obter sucesso com a venda de seus livros de ficção e iniciar uma prolífica produção para o teatro, em 39 o escritor recebeu o Pulitzer por sua peça "The Time of Your Life". Ganhou, mas preferiu não levar o dinheiro, alegando que "o comércio não deveria julgar as artes".
Impregnados de humanismo pacifista (um tanto pré-hippie), tal característica de seus livros motivaram a ascensão e queda de Saroyan, acusado no final da vida de ter "perdido a mão" em suas preocupações anti-belicistas, muitas vezes confundidas com mero excesso de açúcar.
Com tendência a também exagerar na bebida e uma predileção particularmente cara pelo jogo, o escritor ainda foi pioneiro em escrever sitcoms para a TV, criando ao menos uma série de sucesso, "Playhouse 90".
Depois de viver alguns anos em Paris, doente de câncer, Saroyan morreu em Fresno, sua cidade natal, em 1981. Cinco dias antes, convocou uma coletiva para dizer que "todo mundo tem de morrer, porém eu sempre acreditei que uma exceção seria feita no meu caso. E agora?". Não há dúvida que o malandro sustentava sua galhardia mesmo nas condições mais adversas.


Joca Reiners Terron é autor de "Hotel Hell" (2003), entre outros livros.

O JOVEM AUDAZ NO TRAPÉZIO VOADOR E OUTRAS HISTÓRIAS. Autor: William Saroyan. Editora: Paz e Terra. Quanto: R$26 (226 págs.).


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