São Paulo, segunda-feira, 14 de agosto de 2006

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NELSON ASCHER

A gente se adapta a tudo


Os atentados acrescentaram a algo simples, como viajar, um desconforto extra

Há pouco tempo ainda se podia fumar dentro de um avião. Agora, mesmo a bagagem de mão está sendo banida. Em breve teremos de voar nus ou vestindo uma camisola hospitalar. Nem embarcaremos antes de nos submetermos a ultra-sonografias, ao exame de cavidades corporais e, quem sabe, de sangue. O lado positivo é que, comprando uma passagem aérea, ganharemos de brinde um check-up completo. E compulsório. A proibição de roupas, por seu turno, encaminhará muitos à academia e à cirurgia estética.
Um atentado múltiplo como o que o Reino Unido diz ter frustrado semana passada já foi tentado, também sem sucesso, nos anos 90. Haverá, com pequenas variações e aperfeiçoamentos incrementais, outras tentativas e mais outras, até que uma delas dê certo. Pensando bem, embora ninguém tenha morrido desta vez (e mesmo que não passasse de um falso alerta), o recente atentado (ou "atentado", não importa) já surtiu efeito de maneiras não menos importantes.
Pois se acrescentou de novo a algo simples, como viajar, uma camada extra de desconforto. E não apenas desconforto, mas igualmente: tempo perdido, burocracia, custos adicionais, maior consumo de ansiolíticos etc. A gente se adapta a tudo e, quando se percebe, descemos todos, de degrauzinho em degrauzinho, ao subsolo. Com nossos próprios pés.
Nem se trata só das férias estragadas de "privilegiados" ou reuniões adiadas de uns poucos executivos. O avião se converteu em instrumento corriqueiro de trabalho. Quem duvida, que vá constatá-lo pessoalmente, qualquer dia da semana, às 6h da manhã, no aeroporto de Congonhas. Tampouco se restringe à aviação comercial. Todos os transportes coletivos, em toda parte, são vulneráveis: do metrô inglês e japonês, passando pelos trens suburbanos espanhóis, aos ônibus israelenses e paulistanos. (De onde, afinal, é que o PCC tirou certas táticas suas?)
A criação e desenvolvimento de um meio de transporte prático e barato (para o usuário individual) como o metrô envolve a existência de um número suficiente de pessoas que não precisam concordar com mais nada exceto com o fato de que todas gostariam, desembolsando o mínimo e correndo o menor risco possível, de sair num horário consensual do ponto A e chegar logo ao ponto B. A possibilidade de um semelhante acordo de base subjaz a/ ou justifica a existência de incontáveis bens e serviços. Se bem que ninguém precise gostar de tais ou quais compositores ou cantoras, desde que muitos desejem ouvir música sozinhos onde e quando tiverem vontade, o mercado potencial está pronto para o iPod.
O metrô (ou a aviação civil, ou a água encanada) simplifica a vida de milhões. Ao mesmo tempo, no entanto, ele concede um poder inesperado a determinados grupos. Como se vê freqüentemente na Europa, os metroviários, caso queiram, podem paralisar uma cidade, a capital, um país inteiro. Quanto mais organizado (ou, talvez, centralizado) o país, mais fácil é fazê-lo e mais cedo os trabalhadores terão descoberto sua força conjunta. Ocorre que uma bomba (uma ameaça de bomba, uma suspeita de bomba) é capaz de produzir resultados idênticos aos de uma greve, ou seja, dá a um "freelancer" qualquer os poderes, digamos, de um grande sindicato. Ou do Estado.
O requisito básico para que tal poder seja exercido é um indivíduo que discorde não dos grandes acordos sociais, econômicos, políticos, religiosos e culturais, mas, sim, de um desses consensos mínimos, como o de que o metrô existe para levá-lo do Jabaquara ao Tucuruvi e não para criar pânico ou perpetrar massacres. Basta um sujeito achar que torneira não é sobretudo uma fonte de água para que milhões precisem comprar filtros. Algo assim aconteceu nos EUA, durante os anos 80, quando alguém pôs cianeto em alguns frascos de Tylenol. Apesar de o fabricante ter agido prontamente, retirando do mercado o produto que voltou depois numa embalagem inviolável, os custos disso foram sem dúvida transferidos para os consumidores e para a população inteira.
A questão é: quando deixa de valer a pena voar daqui para o Rio de Janeiro? Quanto tempo a mais na fila torna preferível ir de carro? Que nível de perigo no metrô levará determinado usuário a procurar um emprego mais próximo? Até onde o custo de uma embalagem pode subir antes que seja caro demais investir na pesquisa de um novo remédio? Após quantas bombas (explodidas ou não) começa a ser prudente fretar um ônibus com os conhecidos em vez de usar outro cheio de estranhos? Será que a gente se adapta mesmo a tudo?


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