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NELSON ASCHER
A gente se adapta a tudo
Os atentados acrescentaram a algo simples, como viajar, um desconforto extra
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Há pouco tempo ainda se podia
fumar dentro de um avião.
Agora, mesmo a bagagem de
mão está sendo banida. Em breve teremos de voar nus ou vestindo uma
camisola hospitalar. Nem embarcaremos antes de nos submetermos a
ultra-sonografias, ao exame de cavidades corporais e, quem sabe, de
sangue. O lado positivo é que, comprando uma passagem aérea, ganharemos de brinde um check-up completo. E compulsório. A proibição de
roupas, por seu turno, encaminhará
muitos à academia e à cirurgia estética.
Um atentado múltiplo como o que
o Reino Unido diz ter frustrado semana passada já foi tentado, também sem sucesso, nos anos 90. Haverá, com pequenas variações e
aperfeiçoamentos incrementais,
outras tentativas e mais outras, até
que uma delas dê certo. Pensando
bem, embora ninguém tenha morrido desta vez (e mesmo que não passasse de um falso alerta), o recente
atentado (ou "atentado", não importa) já surtiu efeito de maneiras não
menos importantes.
Pois se acrescentou de novo a algo
simples, como viajar, uma camada
extra de desconforto. E não apenas
desconforto, mas igualmente: tempo perdido, burocracia, custos adicionais, maior consumo de ansiolíticos etc. A gente se adapta a tudo e,
quando se percebe, descemos todos,
de degrauzinho em degrauzinho, ao
subsolo. Com nossos próprios pés.
Nem se trata só das férias estragadas de "privilegiados" ou reuniões
adiadas de uns poucos executivos. O
avião se converteu em instrumento
corriqueiro de trabalho. Quem duvida, que vá constatá-lo pessoalmente,
qualquer dia da semana, às 6h da
manhã, no aeroporto de Congonhas.
Tampouco se restringe à aviação comercial. Todos os transportes coletivos, em toda parte, são vulneráveis: do metrô inglês e japonês, passando pelos trens suburbanos espanhóis, aos ônibus israelenses e paulistanos. (De onde, afinal, é que o PCC tirou certas táticas suas?)
A criação e desenvolvimento de
um meio de transporte prático e barato (para o usuário individual) como o metrô envolve a existência de
um número suficiente de pessoas
que não precisam concordar com
mais nada exceto com o fato de que
todas gostariam, desembolsando o
mínimo e correndo o menor risco
possível, de sair num horário consensual do ponto A e chegar logo ao
ponto B. A possibilidade de um semelhante acordo de base subjaz a/
ou justifica a existência de incontáveis bens e serviços. Se bem que ninguém precise gostar de tais ou quais
compositores ou cantoras, desde
que muitos desejem ouvir música
sozinhos onde e quando tiverem
vontade, o mercado potencial está
pronto para o iPod.
O metrô (ou a aviação civil, ou a
água encanada) simplifica a vida de
milhões. Ao mesmo tempo, no entanto, ele concede um poder inesperado a determinados grupos. Como
se vê freqüentemente na Europa, os
metroviários, caso queiram, podem
paralisar uma cidade, a capital, um
país inteiro. Quanto mais organizado (ou, talvez, centralizado) o país,
mais fácil é fazê-lo e mais cedo os
trabalhadores terão descoberto sua
força conjunta. Ocorre que uma
bomba (uma ameaça de bomba,
uma suspeita de bomba) é capaz de
produzir resultados idênticos aos de
uma greve, ou seja, dá a um "freelancer" qualquer os poderes, digamos,
de um grande sindicato. Ou do Estado.
O requisito básico para que tal poder seja exercido é um indivíduo que
discorde não dos grandes acordos
sociais, econômicos, políticos, religiosos e culturais, mas, sim, de um
desses consensos mínimos, como o
de que o metrô existe para levá-lo do
Jabaquara ao Tucuruvi e não para
criar pânico ou perpetrar massacres. Basta um sujeito achar que torneira não é sobretudo uma fonte de
água para que milhões precisem
comprar filtros. Algo assim aconteceu nos EUA, durante os anos 80,
quando alguém pôs cianeto em alguns frascos de Tylenol. Apesar de o
fabricante ter agido prontamente,
retirando do mercado o produto que
voltou depois numa embalagem inviolável, os custos disso foram sem
dúvida transferidos para os consumidores e para a população inteira.
A questão é: quando deixa de valer
a pena voar daqui para o Rio de Janeiro? Quanto tempo a mais na fila
torna preferível ir de carro? Que nível de perigo no metrô levará determinado usuário a procurar um emprego mais próximo? Até onde o
custo de uma embalagem pode subir
antes que seja caro demais investir
na pesquisa de um novo remédio?
Após quantas bombas (explodidas
ou não) começa a ser prudente fretar um ônibus com os conhecidos
em vez de usar outro cheio de estranhos? Será que a gente se adapta
mesmo a tudo?
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