São Paulo, sexta-feira, 14 de agosto de 2009

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OPINIÃO

Música barroca de banda exibe tom atemporal

LUIZ FERNANDO CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

IMAGINEM A cena: é domingo no Jardim de Luxemburgo, em Paris. Jovens e velhos, gente dos mais distantes "arrondissements" chegam ao parque para deitar e rolar na grama clara, passear entre as árvores, mas também fazer piqueniques.
Entre estes, Zach Condon, vocalista do Beirut. Ele chega acompanhado de seu inseparável trompete e, entre as frutas e depois do vinho, libera um som melancólico que se infiltra na atmosfera.
Num sopro, o mundo parece melhor, as pessoas sorriem mais, as crianças correm levantando suas pequeninas mãos, os velhos se refazem de seus cansaços infinitos e nos lançam olhares de esperança. Uma imagem impressionista que, talvez, não possa ser repetida nos dias de hoje.
O piquenique já vai longe, era o tempo quando a banda, mesmo no circuito alternativo de Paris, ainda era obscura. Hoje o Beirut é um dos grupos mais populares entre os seres de bom ouvido e, por alguns desses milagres que acontecem apenas de vez em quando na indústria cultural, segue sem concessões à sua música multifacetada -e por que não dizer alegórica? Barroca?
O personagem fundamental do período barroco é o alegorista, que, no sentido etimológico, significa falar de uma coisa querendo dizer outra. No caso do Beirut: um canto americano, querendo cantar o Leste Europeu, o México, e até mesmo o Brasil através de "Leãozinho", de Caetano Veloso.
Se chegamos ao Brasil, chegamos a Machado de Assis, que, em sua fase final, era um barroco por excelência. Ao observarmos o delírio interpretativo de "Dom Casmurro", onde tudo serve de indício e prova de que Capitu o traiu, nos colocamos diante de um alegorista barroco. Tudo é alegoria.
Foi assim que o espírito antropofágico me tomou em "Capitu", me arrastando para dentro do Jardim de Luxemburgo, onde o ar espesso de sopros e bandolins aguçou lembranças de um coreto da infância, revolvendo-me, como as eróticas volutas dos Templos Sagrados de Minas Gerais.
No entanto, se tivesse que apontar a canção que me encorajou nesta concepção de um chão musical para "Capitu", um chão de contrários, apontaria "Minhas Lágrimas", de Caetano Veloso: "Nada serve de chão/ onde caiam minhas lágrimas".
O mais puro barroco, eu pensava. O mais moderno dos barrocos, eu sorria, eu chorava, eu gargalhava, e, agarrado à canção, avistava Bento Santiago, em pleno século 19, sua face através da escotilha de um Boeing 747, rumo à Europa, mas atravessando nuvens em uma outra disposição geográfica e celestial, cruzando sua própria desolação, ou, seguindo a canção: Desolação de Los Angeles. Mas quem seria Los Angeles? Capitu, por certo. Tudo significava tudo. Tudo, uma bruxaria só.
Dito e feito. Uma outra canção de Caetano entrou na abertura de uma novela. Eu, agora também desolado, traído pela música que me deixava uma partitura em branco entre as mãos, um silêncio, em companhia apenas de meus olhos de ressaca.
Foi quando uma nova canção surgiu. Novamente "minha"! "Uma já estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca".
Levei-a para o ensaio com os atores. "Minha" canção alimentou com enorme força nossa visão, como se abrisse uma porta, que era a de apresentar-se como tema atemporal e sem fronteiras para uma história do século 19 e de sempre. A porta se abriu e eu entrei: "Elephant Gun", do Beirut.


LUIZ FERNANDO CARVALHO , 49, é cineasta e diretor de TV. Dirigiu "Lavoura Arcaica", "Os Maias" e "Capitu", entre outros títulos


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