São Paulo, Sábado, 14 de Agosto de 1999
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A volta do 'Processo'


Onze anos depois de montar a obra do escritor tcheco, Gerald Thomas mistura a fantasmagoria kafkiana com o mundo da moda, em montagem que terá 12 modelos no palco


FERNANDO DE BARROS E SILVA
da Reportagem Local

Gerald Thomas, Bete Coelho e Franz Kafka estão juntos novamente. Dessa vez, para atazanar o "mundo fashion", ou investigar o que há de fantasmagórico no universo do burburinho e do glamour. É a volta do "Processo", que o diretor teatral vê também como uma homenagem ao circo da moda que ele põe no tribunal.
Onze anos separam "Um Processo", a peça que em 88 inscreveu definitivamente a dupla Gerald Thomas & Bete Coelho dentro do teatro brasileiro, de "Processo", a sua continuação, que a mesma dupla começou a ensaiar nesta semana e pretende estrear em São Paulo em novembro.
Na primeira montagem, o mundo atormentado e aflito de Josef K., o personagem de "O Processo", servia de inspiração para Gerald Thomas exibir a sua versão particular do teatro do absurdo. O nonsense do texto dialogava com o rigor formal da encenação e a plasticidade expressionista do conjunto, marcas registradas da "ópera seca" criada pelo diretor.
O livro de Franz Kafka (1883-1924), escrito entre 1914 e 1915 e deixado inacabado pelo autor, volta agora a inspirar a nova montagem. Mas, como antes, não é a letra do romance, e sim a atmosfera kafkiana que Gerald Thomas quer derramar sobre o mundo luminoso das passarelas.
"Toda arte volta para uma premissa básica, procura suas raízes de novo, faz as suas perguntas cíclicas, retoma a si mesma; depois que você cria tantas metáforas, precisa checar de onde elas saíram", diz Gerald Thomas, 44, procurando explicar o fio da meada que une os dois "processos", entre os quais estão cerca de 40 produções feitas de 88 a 99.
E por que Kafka no "mundo fashion"? Muita gente verá na aproximação do escritor tcheco -que enfrentou o vazio da expressão e colocou a palavra em crise- com o universo da moda apenas mais uma autopromoção de Thomas, tão frívola quanto o universo sobre o qual agora se debruça. O diretor reconhece e assume o risco.
"O mundo fashion vive das declarações as mais fúteis e da estética a mais fútil possível. Finge uma personalidade o tempo inteiro e a cada momento uma diferente. Eles não têm nada a dizer, mas têm um mercado para preencher. São o vazio de sentido da arte moderna e ao mesmo tempo a sua expressão maior. Existem monumentos artísticos nisso que podem parecer só um grande mercado da frivolidade", diz Gerald Thomas.

Labirinto de escadas
"Processo" terá, além de Bete Coelho como protagonista, mais cinco atores. Por ora, apenas Cristina Mutarelli está confirmada no elenco, que deve contar ainda com 12 modelos atuando como figurantes. Para escolhê-las, orientá-las nos ensaios e colaborar com a produção do espetáculo, Thomas chamou o diretor do MorumbiFashion, Paulo Borges.
O cenário da peça, assinado pelo próprio Thomas, é uma "malha" de escadas, formando uma espécie de labirinto, um ambiente que sugere e provoca vertigem, atravessado de ponta a ponta por uma passarela de moda (veja na foto da capa o esboço do cenário desenhado por Thomas). No primeiro "Processo", a fantasmagoria do cenário era obtida por uma biblioteca em forma de labirinto, concebida por Daniela Thomas.
"Processo" deve custar, segundo o diretor, "algo entre R$ 150 e R$ 200 mil". Thomas diz estar "levantando os patrocínios", que prefere não adiantar. A sala de estréia da peça também não está definida, mas o diretor diz que isso é o que menos o preocupa. "Aguardo os convites. A primeira sala que me convidar e eu considerar adequada leva a peça", afirma.
Thomas aposta que possa reeditar em alguma medida o sucesso da sua montagem anterior de Kafka. "Um Processo" era, na verdade, uma das três peças da "Trilogia Kafka" que Thomas levou ao palco em 88. Era encenada em rodízio com "Uma Metamorfose" e "Praga", a primeira adaptada do romance "A Metamorfose" e a última, sobre a cidade natal de Kafka, escrita pelo próprio diretor.
"A "Metamorfose" foi um fracasso, "Praga" foi um intermediário e a explosão foi o "Processo'", diz Thomas. A peça estreou em Campinas em abril de 88, veio a São Paulo em maio e ficou um ano em cartaz no país antes de fazer uma temporada de cinco semanas em Nova York e participar de um festival em Viena, na Áustria, para voltar ao Rio por mais um mês.
"Foi o trabalho que fez uma mancha definitiva no teatro brasileiro na década de 80, alguns acham que a pior, outros a melhor mancha", diz Thomas.

Repensar o teatro
Com seu novo "Processo", o diretor pretende colaborar para que o país repense seu teatro. "Há toda uma geração que é resultado desse "Processo" de 88. Seria frívolo da minha parte não retomar isso. Não quero só ficar jogando espoletas e deixar que as bombas estourem por aí. Aquele produto pensado em 88 está se repensando dentro da mesma cidade em que nasceu. Hoje vivemos uma espécie de mercantilização, de liquidação de tudo, e é importante reafirmar certos valores que colocaram a gente no mapa. O mundo que está no "Processo" ficou mais podre em 11 anos", diz.
A atriz Bete Coelho, 36, partilha da idéia. "Seria mais tranquilo fazer novela, ganhar dinheiro. Aliás, eu ia fazer uma novela, desisti para fazer a peça. Acho importante retomar aquele trabalho. Eu ouço o Gerald falar e imediatamente consigo transformar o que ele diz em voz, em gesto, em olhar, em movimento",diz Bete.
Tanto a atriz quanto o diretor identificam no teatro atual imitações do estilo que criaram. "Eu tenho até um certo orgulho das imitações que vejo por aí. Mostra que imprimi algum estilo, alguma idéia, algum corpo no teatro. É chato porque as pessoas não ousam dizer onde está a origem".
Thomas é mais incisivo. "Fui e ainda sou muito copiado. Há pequenas cápsulas de Gerald Thomas em qualquer grupelho que quer fazer teatro. Não darei os nomes. Eles sabem quem são. Os mesmos imitadores que te avacalham são também os que te impulsionam para o futuro. Agora eles vão ter uma resposta".
Em novembro, Josef K. ressuscita com uma explosão luminosa. É a primeira cena do "Processo".


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