São Paulo, Sábado, 14 de Agosto de 1999
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CINEMA - GRAMADO
Diretor retrata Brasil oculto em "Santo Forte"

Divulgação
Cena do documentário "Santo Forte", de Eduardo Coutinho


JOSÉ GERALDO COUTO
enviado especial a Gramado

O longa-metragem "Santo Forte", de Eduardo Coutinho, pode até não ganhar nenhum Kikito no 27º Festival de Gramado, mas é um filme destinado a ser um marco do cinema documental brasileiro, ao lado de "Cabra Marcado para Morrer", do mesmo diretor.
"Santo Forte" aborda a vivência religiosa de moradores de uma favela carioca, a Vila Parque da Cidade. Mas Coutinho não esconde sua intenção: "Não estou falando só de religião nem de favela. Estou falando do Brasil".
O filme custou R$ 300 mil e quase dois anos de trabalho. Foi produzido pelo Centro de Criação de Imagem Popular, organização não-governamental de que Coutinho participa. Nesta entrevista, o cineasta explica sua concepção do cinema documental.

Folha - A religião é o tema de outro documentário recente, "Fé", de Ricardo Dias. Por que esse tema está tão presente?
Eduardo Coutinho -
Não sei qual foi o impulso que levou o Ricardo a fazer seu filme. Quando ele me disse o que estava fazendo (um amplo painel da religiosidade brasileira), comentei que eu ia fazer o contrário, ou seja, ia me concentrar na experiência cotidiana de poucos personagens.
Só falo do cotidiano das pessoas, e a religião era a porta de entrada para esse cotidiano. Ao falar de sua vivência religiosa, as pessoas acabam falando de outras coisas: a violência doméstica, o marido, o trabalho etc.
Espero estar falando do Brasil no filme. Não porque a favela seja o país em ponto pequeno, mas porque há padrões mais ou menos recorrentes na atitude da população brasileira.

Folha - O que você buscava, usando a religião como gancho?
Coutinho -
O que me interessa são as identidades flutuantes, de raça, de gênero etc. Não me interessava o culto como espetáculo, seja o culto do candomblé, o pentecostal ou o católico.
Busquei o que as pessoas pensam sobre sua própria experiência religiosa. Por isso, escolhi 11 personagens fundamentais que falam como vivem a coisa.
As reportagens que mostram a religião como espetáculo são como as reportagens de Carnaval. Sua primazia do visual leva a uma densidade zero de informação e de poesia. A oralidade, por vezes tão desprezada, é densa e poética.

Folha - Os entrevistados se expõem com grande naturalidade. Como conseguiu isso?
Coutinho -
Em primeiro lugar, não filmo entrevistas. Filmo conversas. Meus documentários são sempre o resultado do encontro entre duas pessoas -geralmente de origem social diferente-, mediado pela câmera.
Não é a câmera que altera a espontaneidade da situação retratada, e sim essa entrada de um indivíduo de outro meio (no caso, eu) naquele universo.
Filmei em vídeo não por economia, mas por opção. Com um chassi de 30 minutos, eu podia ligar a câmera antes de começar a conversa. O fluxo era contínuo.
Esse procedimento dá espaço para que a pessoa construa seu próprio retrato. Na verdade, ela diz como gostaria de ser, ou de ser vista, mas é assim que revela muito do que ela de fato é. O que me interessa é essa auto-representação. É o caminho do imaginário.

Folha - Como vê o documentário hoje?
Coutinho -
Acho que ainda se fazem muito poucos documentários no Brasil, embora sejamos praticamente o único país latino-americano que ainda os faz.
Mas vejo duas tendências no documentário que não me atraem: uma é a da primazia da imagem, do espetáculo; a outra é uma espécie de fuga ficcional, a dos "docudramas", que acho em geral detestáveis.

Folha - Em oposição a isso, como é o seu estilo documental?
Coutinho -
Em todos os meus filmes há sempre a presença da oralidade. O que mudou nos dois últimos -"Boca de Lixo" e "Santo Forte"- com relação aos anteriores é que agora não há mais narrador.
Além disso, todo o som do filme é o som ambiente captado durante a filmagem. Acho obsceno utilizar qualquer música que conote sentimento nos meus filmes.
Acho importante deixar claro que havia uma câmera ali, e que tudo o que está no filme foi produzido pela situação de filmagem, ou seja, pelo contato meu e da equipe com a pessoa que fala.


O jornalista José Geraldo Couto viaja a convite da organização do Festival de Gramado do Cinema Latino e Brasileiro

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