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CONTARDO CALLIGARIS
"O Maior Amor do Mundo"
Nossa capacidade de
amar depende sempre do quanto e de como nós fomos amados
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ASSISTI A "O Maior Amor do
Mundo", o filme de Cacá Diegues que estreou na sexta-feira passada. Cacá Diegues é o grande
cineasta naïf do cinema brasileiro. O
que quer dizer naïf?
Pela definição do "Aurélio", naïf se
diz da arte que é "desvinculada da
tradição erudita convencional e de
vanguarda, e que é espontânea e popularesca na forma sempre figurativa, valendo-se de cores vivas e simbologia ingênua". A definição é boa,
mas precisa de dois acréscimos: 1-) a
palavra "ingênuo" vem do latim e
designa, antes de mais nada, quem
nasceu livre, sem servidão nem escravidão; 2-) há mais um traço crucial da arte naïf: um amor à "vida como ela é", graças ao qual narrar é
uma alegria, mesmo quando a história é dramática ou triste.
Esses acréscimos são interligados:
a liberdade (formal, retórica etc.) é
fruto do prazer de contar, que, por
sua vez, é fruto da paixão de viver.
Aparte. Quem quiser verificar (ou
contestar) essa definição da arte naïf
pode ver o acervo do Museu Internacional de Arte Naïf
(mian@museunaif.com.br), no Rio de Janeiro, na r. Cosme Velho, 561, perto do
trenzinho que leva ao Corcovado.
No último filme de Cacá Diegues,
um astrofísico brasileiro americanizado acaba amando uma moça
(talvez duas) da Baixada Fluminense. Ele vai e vem entre um hotel
de luxo e um esgoto a céu aberto.
Mas o filme não transmite uma
mensagem sociológica sobre os encontros e desencontros entre classes. Tampouco é uma denúncia do
estado tétrico de nossas periferias.
O filme é livre dessas "obrigações" porque é animado pela vontade de contar a vida, com aquelas
misérias e grandezas que são, por
assim dizer, interclassistas. Os fracassos e os sucessos do amor, a
nostalgia, o peso da morte iminente, o anseio por um sentido são afetos que decidem as cores de nossa
existência em qualquer cenário.
É difícil falar de "O Maior Amor
do Mundo" sem estragar o prazer
de quem ainda não assistiu ao filme. Posso propor alguns comentários, deixando a cada um a tarefa de
relacioná-los com a história, quando ela se desvendar.
O filme me comoveu porque toca
numa verdade que todos sabemos
comprovar, a cada dia: nossa capacidade de amar (uma parceira ou
um parceiro, os filhos que tivemos
ou gostaríamos de ter, o próximo
em geral) depende sempre do
quanto e de como fomos amados.
Um filho pode ser, para um dos
pais, o lembrete da derrota do Brasil no jogo fatídico contra o Uruguai, na Copa de 50, ou, pior, o símbolo da perda irreparável de um
outro ser amado. Em certas condições, um filho pode também ser,
para um dos pais, o resultado da infidelidade do outro. Não há carinho que adiante: para o filho, o lugar que ele ocupou na história dos
pais é sempre um fardo decisivo.
Outro aparte. Hoje, a lei admite o
aborto para salvar a vida da mãe: é
para não condenar quem nasce a
ser o representante da morte de
sua própria mãe e, para o pai, o
monstro que matou a mulher que
ele amava. A lei também admite o
aborto em caso de gravidez decorrente de estupro: é para não condenar quem nasce a ser, aos olhos da
mãe, o representante da violência
que ela sofreu. Que a gente concorde ou não, o que importa é que o legislador, nesses casos, não se preocupa com os pais, mas com o próprio destino do nascituro.
Voltando ao filme: Antônio, que
não pôde ser amado na infância
(por razões que o espectador descobrirá), não sabe amar ninguém.
Na iminência da morte, ele sai à
procura da única pessoa que talvez
o tivesse amado (sua mãe biológica). É uma procura de alto risco,
pois, salvo revelações (o filme tem
algumas em reserva), a mãe biológica é, em princípio, quem abandonou seu filho.
A beleza da história contada por
Cacá Diegues é que Antônio não
procura o amor que não teve como
uma consolação no fim de sua vida.
Ele procura porque, quem sabe,
ainda dê tempo para aprender a
amar (uma mulher ou o filho que,
até então, era impossível que ele tivesse). O maior amor do mundo é
provavelmente o amor materno;
não porque uma mãe amaria mais
do que um pai, um companheiro
ou uma companheira, mas porque
o amor da mãe é o amor que melhor pode nos ensinar a amar.
O filme é uma parábola, livre e
alegre, sobre essa verdade. Em prêmio, uma sugestão: talvez a vida
encontre seu sentido como um
aprendizado do amor -aprendizado que pode ser longo ou repentino, da última hora.
@ - ccalligari@uol.com.br
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