São Paulo, segunda-feira, 14 de outubro de 2002

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"EXERCÍCIOS DE LEVITAÇÃO"

Fragmentos líricos descrevem experiência existencial

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

O s textos de Ledusha Spinardi contidos em "Exercícios de Levitação" oferecem de imediato algumas dificuldades à crítica. O que encontramos são fragmentos líricos nos quais a autora descreve sua experiência existencial diante da natureza, da escrita, do amor, da metrópole. São classificados como poesia, e é capaz que sejam.
A maioria desses fragmentos aparece disposta como na prosa, o que não causa espécie desde Rimbaud. A forma mais frequente é a parataxe, de orações e termos justapostos. Algumas composições são inteiramente urdidas desse modo, como "Belas e Malditas", onde vemos uma enumeração de qualificadores para o termo "palavra".
Com efeito, a parataxe é um recurso mais poético do que a subordinação lógica, comum à prosa. O uso do presente atemporal reforça o compromisso poético. Mas há trechos bastante narrativos também, como "Estreamos na dança tortuosa aquela noite em que parti o salto e jogamos pela janela a Polaroid".
A imiscuição do cotidiano e da prosa na poesia também não é novidade desde os modernistas, Manuel Bandeira que nos diga. Mas lá havia um rigor que, em princípio, Ledusha recusa. A poesia é o terreno da síntese, da concisão, da matemática das formas, mas não é o que vemos aqui.
Embora curtos, os textos de Ledusha parecem fluir sem lei nem medida. Quase tudo surge cercado de uma adjetivação que soa desnecessária: "vento rude", "intolerância provinciana". O mesmo ocorre quando a autora se compraz em aliterações de efeito duvidoso: "A brisa lambe o Leblon com lábia difusa" ou "falo da fala que me fascina".
Em consequência, a poesia se espicha, afrouxa-se, lânguida. De súbito, porém, nos deparamos com enunciados que nos cativam, por sua delicadeza e inventividade: "No ar repleto de sinais tudo se espreguiça" e "Outubro termina a bordo de um ventinho de cambraias".
Estão em jogo duas forças antagônicas: a da expressão derramada que atordoa e a da expressão delicada que encanta. É a própria autora quem dá uma dica sobre essa dicotomia: "Já revirei o mundo com olhos e língua acesos. Agora sobra o delicado gesto". Por baixo das palavras haveria um pulsar que não se conforma ao molde, que explode e escapa. Essa energia, que Ledusha identifica com um frêmito oriundo da experiência passada, passa agora por seu crivo mais maduro, que tenta sustar o derramamento.
Nos melhores momentos, a confluência das duas forças produz imagens poderosas. Por exemplo: "Uma vez vimos juntos/um escaravelho no crepúsculo/(Amor é o que há)/Nunca mais fomos os mesmos/O que às vezes é de uma beleza/quase insuportável". Plasticamente, o escaravelho no crepúsculo lembra, digamos, as "rosas migradoras" e o "pastor que apascenta pianos" de Murilo Mendes.
A comparação não é aleatória, pois foram os surrealistas, em cuja fonte abeberou-se o poeta juiz-forano, que apregoaram o uso da energia instintiva e do fluxo irrestrito do inconsciente na elaboração estética. Pena que nem sempre Ledusha logre trabalhar sua inquietação interna em soluções poéticas que nos assombram igualmente a imaginação.



Exercícios de Levitação
  
Autora: Ledusha B. A. Spinardi
Editora: 7 Letras
Quanto: R$ 20 (104 págs.)
Lançamento: hoje, às 20h, no bar Balcão (rua Melo Alves, 150, São Paulo)


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