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CRÍTICA
Meirelles se firma como o mais corajoso de sua geração
SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL
Nos anos 80, Miguel Magno e
Ricardo de Almeida inventavam o besteirol paulistano no
TBC com os personagens Fanta
Maria e Pandora, hilariantes, um
dos quais tinha o bordão: "Você
leu tal texto? É pré-requisito para
esta aula". A cada vez que um deles fazia a pergunta, tão ouvida fora dali a sério pela platéia, formada de estudantes na maioria, a casa vinha abaixo em gargalhada.
O assunto aqui é sério -embora na mesma época Fernando
Meirelles fosse Valdeci, o invisível
câmera do cômico personagem
Ernesto Varella de Marcelo Tas-
, mas dois livros deveriam ser
"pré-requisito" para o público
deste seu "O Jardineiro Fiel".
Um é o próprio romance homônimo de John Le Carré. O escritor
britânico, que fez fama e fortuna
com a Guerra Fria e parecia fadado ao esquecimento com a queda
do Muro de Berlim, soube se reinventar. Desde então tem lançado
obras mais consistentes e críticas
do que nunca. É o caso deste
-mesmo assim, o filme que o
brasileiro adaptou é melhor.
Outro é "Generation RX", um
trocadilho em inglês com a chamada Geração X e a sigla para
"droga sujeita a prescrição médica", "RX". É o título de um livro
que acaba de sair nos EUA, do escritor Greg Critser, e traça um raio
x da indústria farmacêutica mundial, subtema importante tanto
do livro quanto do filme.
Os bastidores da indústria são
de eriçar os pêlos da nuca de qualquer cristão. Segundo Critser, o
número médio de receitas por
pessoa pulou de sete em 1993 para
11 em 2004 só nos Estados Unidos; são escritas ali 3 bilhões de receitas por ano, que movimentam
US$ 180 bilhões hoje e devem gerar US$ 414 bilhões em 2011.
A "Big Farma", como ele chama, gasta US$ 8.000 a US$ 15 mil
por ano em mimos por médico
para vender seus produtos e paga
90% (!) de todos os cursos de
aperfeiçoamento da classe. O número de crianças e adolescentes
tomando remédios para problemas de personalidade ou depressão pulou 77% de 2000 a 2003.
O que esses números têm a ver
com "O Jardineiro Fiel"? Tudo,
pois é a falta de ética da indústria
que move o filme. Aqui, os barões
das drogas legais não saem melhor na foto do que os reis das ilegais de "Cidade de Deus", que levou Meirelles ao reconhecimento
mundial e a inéditas quatro indicações para o Oscar em 2003.
A improvável história de amor
entre um fleumático diplomata
britânico (Ralph Fiennes) e uma
esquentada ativista ambiental
(Rachel Weisz) é o fio que conduz
à descoberta da manobra de uma
multinacional farmacêutica, que
está usando cobaias humanas em
um país miserável africano.
Ela descobre tudo e se fecha, para proteger seu amor; ele acha que
ela está tendo um caso, mas se
mantém fiel até o fim, como no título. É como se fosse um "Otelo"
sem o desfecho trágico, pelo menos não o desfecho shakespeareano, em que o papel de Iago coubesse à "Big Farma". Há ainda o
subplot da decadência do imperialismo britânico e a dificuldade
de seus diplomatas de aceitá-la.
Tudo isso faz de "O Jardineiro
Fiel" um filme magnífico, uma
das histórias de amor mais verdadeiras e tocantes levadas à tela,
tendo como pano de fundo uma
das situações mais sórdidas por
que passa a nossa sociedade. O cineasta que consegue fazer isso
sem perder a platéia no meio do
caminho merece aplausos.
E são aplausos que Meirelles recebe desde a estréia mundial, há
algumas semanas. Por tornar o livro mais visceral do que era, exigindo, por exemplo, locações não
previstas em cidades paupérrimas do Quênia. Por tirar o máximo de um elenco escolhido a dedo, em que se destaca, sim, o casal
central de atores mas também intérpretes de papéis secundários
como o irrepreensível Bill Nighy
(de "Simplesmente Amor").
Por fim, por ser um dos cineastas mais corajosos de sua geração.
O Jardineiro Fiel
The Constant Gardener
Direção: Fernando Meirelles
Produção: Reino Unido, 2005
Com: Ralph Fiennes, Rachel Weisz
Quando: a partir de hoje nos cines Bristol, Jardim Sul, Penha e circuito
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