São Paulo, sexta-feira, 14 de outubro de 2005

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CRÍTICA

Meirelles se firma como o mais corajoso de sua geração

SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

Nos anos 80, Miguel Magno e Ricardo de Almeida inventavam o besteirol paulistano no TBC com os personagens Fanta Maria e Pandora, hilariantes, um dos quais tinha o bordão: "Você leu tal texto? É pré-requisito para esta aula". A cada vez que um deles fazia a pergunta, tão ouvida fora dali a sério pela platéia, formada de estudantes na maioria, a casa vinha abaixo em gargalhada.
O assunto aqui é sério -embora na mesma época Fernando Meirelles fosse Valdeci, o invisível câmera do cômico personagem Ernesto Varella de Marcelo Tas- , mas dois livros deveriam ser "pré-requisito" para o público deste seu "O Jardineiro Fiel".
Um é o próprio romance homônimo de John Le Carré. O escritor britânico, que fez fama e fortuna com a Guerra Fria e parecia fadado ao esquecimento com a queda do Muro de Berlim, soube se reinventar. Desde então tem lançado obras mais consistentes e críticas do que nunca. É o caso deste -mesmo assim, o filme que o brasileiro adaptou é melhor.
Outro é "Generation RX", um trocadilho em inglês com a chamada Geração X e a sigla para "droga sujeita a prescrição médica", "RX". É o título de um livro que acaba de sair nos EUA, do escritor Greg Critser, e traça um raio x da indústria farmacêutica mundial, subtema importante tanto do livro quanto do filme.
Os bastidores da indústria são de eriçar os pêlos da nuca de qualquer cristão. Segundo Critser, o número médio de receitas por pessoa pulou de sete em 1993 para 11 em 2004 só nos Estados Unidos; são escritas ali 3 bilhões de receitas por ano, que movimentam US$ 180 bilhões hoje e devem gerar US$ 414 bilhões em 2011.
A "Big Farma", como ele chama, gasta US$ 8.000 a US$ 15 mil por ano em mimos por médico para vender seus produtos e paga 90% (!) de todos os cursos de aperfeiçoamento da classe. O número de crianças e adolescentes tomando remédios para problemas de personalidade ou depressão pulou 77% de 2000 a 2003.
O que esses números têm a ver com "O Jardineiro Fiel"? Tudo, pois é a falta de ética da indústria que move o filme. Aqui, os barões das drogas legais não saem melhor na foto do que os reis das ilegais de "Cidade de Deus", que levou Meirelles ao reconhecimento mundial e a inéditas quatro indicações para o Oscar em 2003.
A improvável história de amor entre um fleumático diplomata britânico (Ralph Fiennes) e uma esquentada ativista ambiental (Rachel Weisz) é o fio que conduz à descoberta da manobra de uma multinacional farmacêutica, que está usando cobaias humanas em um país miserável africano.
Ela descobre tudo e se fecha, para proteger seu amor; ele acha que ela está tendo um caso, mas se mantém fiel até o fim, como no título. É como se fosse um "Otelo" sem o desfecho trágico, pelo menos não o desfecho shakespeareano, em que o papel de Iago coubesse à "Big Farma". Há ainda o subplot da decadência do imperialismo britânico e a dificuldade de seus diplomatas de aceitá-la.
Tudo isso faz de "O Jardineiro Fiel" um filme magnífico, uma das histórias de amor mais verdadeiras e tocantes levadas à tela, tendo como pano de fundo uma das situações mais sórdidas por que passa a nossa sociedade. O cineasta que consegue fazer isso sem perder a platéia no meio do caminho merece aplausos.
E são aplausos que Meirelles recebe desde a estréia mundial, há algumas semanas. Por tornar o livro mais visceral do que era, exigindo, por exemplo, locações não previstas em cidades paupérrimas do Quênia. Por tirar o máximo de um elenco escolhido a dedo, em que se destaca, sim, o casal central de atores mas também intérpretes de papéis secundários como o irrepreensível Bill Nighy (de "Simplesmente Amor").
Por fim, por ser um dos cineastas mais corajosos de sua geração.


O Jardineiro Fiel
The Constant Gardener
    
Direção: Fernando Meirelles
Produção: Reino Unido, 2005
Com: Ralph Fiennes, Rachel Weisz
Quando: a partir de hoje nos cines Bristol, Jardim Sul, Penha e circuito


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