São Paulo, sábado, 14 de outubro de 2006

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análise

Autor quer mesclar Oriente e Ocidente

MAMEDE MUSTAFA JAROUCHE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Desafiando talvez o risco do lugar-comum, o próprio Orhan Pamuk caracterizou sua obra como resultado de um trabalho de colagem, "pensamentos roubados" (palavras dele) das experiências das literaturas européia e americana, irrigadas pela mitologia islâmica do legado cultural turco. Para o autor, o importante é que sua literatura exerça um papel análogo ao que ele reivindica para a Turquia contemporânea: o de ponte entre o Ocidente e o Oriente, posição que ele próprio mimetiza em seu apartamento em Istambul, Europa, mas inteiramente voltado para a vastidão asiática.
Assim também em suas obras, das quais a mais lida e conhecida no Brasil, "Meu Nome É Vermelho" (mas não a mais divulgada em escala mundial, palma que cabe a "O Livro Negro"), faz do conflito da modernização, relatado por uma vastidão de falas e personagens cuja voz se vai impondo na sucessividade dos eventos, saturando-os de discurso mas esvaziando-lhes toda possibilidade de sentido unívoco.
Pamuk extrai, reelaborando-o, o melhor das tradições culturais em que se apóia, e sua escrita, certamente, é finíssima.
Pode-se, porém, apostar que a motivação dos jurados do Nobel não foi só literária: cidadão de um país cuja inclusão na Comunidade Européia não é em absoluto consensual, o escritor tem atacado, de um modo que merece admiração e estímulo, os terríveis tabus do massacre aos armênios e aos curdos, além da intolerância religiosa, o que lhe tem custado perseguições e dissabores. Daí que seja, para além de sua literatura, merecedor de todo apoio.
Estar no olho desse furacão, de algum modo, o transformou num ser mais ambíguo que os dualismos de sua literatura: a participação de Pamuk na Flip de 2005 foi mesmo para os padrões de tolice bonachã e pressurosa que caracterizam esse doce evento desastroso, entre outras coisas, devido à incapacidade do autor de (des)situar-se: falando de um texto remotamente "oriental", conforme ele supunha, o tédio de sua palestra foi, de início, atenuado com um plural implausível, embora divertido: "Nós, ocidentais..."


MAMEDE MUSTAFA JAROUCHE é professor de língua e literatura árabe da USP e tradutor de "O Livro das Mil e Uma Noites" (Ed. Globo).

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