São Paulo, sábado, 14 de outubro de 2006

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Crítica/contos

Trevisan se volta para a marginália

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

O mundo do escritor curitibano Dalton Trevisan continua intacto. É certo que, nesta nova coleção de contos "Macho Não Ganha Flor", as crises conjugais cedem um pouco o espaço para os afazeres da marginália, mas se trata apenas de um ajuste de rota.
As paixões primitivas, o enfoque em personagens que nunca pensam, mas agem, as justificativas pífias diante da quebra do decoro, do rompimento das regras sociais, regem o universo da baixa extração da cidade grande, dos bandidos e dos malandros, dos pequenos traficantes e das meretrizes, dos sujeitos que "se viram" nas fímbrias do capitalismo, da ralé.
Diante do percurso traçado por suas narrativas anteriores, porém, essas aqui parecem ter adquirido corpo. Os microcontos de uma página, ou até menos, em que toda uma situação ficcional é sintetizada numa espécie de haicai narrativo, deram lugar a histórias ligeiramente mais desenvolvidas, com enredos alongados que permitem maior liberdade de uso de recursos literários.
Como no conto "O Gato de Muleta", em que a história que vinha sendo contada por um aleijado catador de papéis que tenta assaltar uma casa passa a ser narrada, numa dada altura, pelo sujeito que acaba por frustrar o roubo. Ao leitor também se permite um vislumbre mais amplo do passado dos personagens, como o do ladrão de "Isso Aí, Malandro", que nos revela que a mulher, após ter "afogado" a filha de seis meses no travesseiro, fugiu com um viciado zarolho.
A sorte desses personagens de fato é tão torta que imaginamos certo sadismo por parte do autor-demiurgo, que, ao engendrá-la, chega a roçar o humor negro. Preso pelo porte de umas pedras de craque, por exemplo, o catador de "Umas Pedrinhas" assim comenta as visitas frustradas da filha: "Todo dia vem me ver, mas não deixam entrar. A pobre é vesguinha da vista esquerda. De tanto choro, com o paizão em cana, periga de cegar o olhinho bom".
A inserção do aumentativo entre dois diminutivos afetivos acentua o patético da conjectura absurda. Há quem diga, sem desrazão, que não é de hoje que Dalton vem bisando fórmulas. A questão sem dúvida é saber se se trata de fórmula ou de estilo. Não se podem acusar os artistas modernos do crime de patentear estilos muito particulares, pelos quais passam a ser reconhecidos. Mas será esse o caso?
De tanto repisar personagens e lances de enredo, de tanto repetir uma linguagem muito específica, com uso de vocabulário bastante pessoal, Dalton não estaria se referindo menos aos seres que habitam as ruas de Curitiba do que aos seres que habitam a sua ficção? Nesse caso, a realidade de que falam seus textos não teria outro referente senão o extraído da realidade do próprio texto.
O desmanche do realismo é ainda maior quando os personagens dão para apontar subtextos literários, como a menção a Quasímodo feita pela colegial de "Prova de Redação" ou o desabafo expresso pelo catador de "Umas Pedrinhas". Diz ele: "o nosso corró, você que entra, deixa lá fora toda esperança" numa clara alusão às palavras gravadas na porta do Inferno da "Divina Comédia", de Dante: "Deixai toda esperança, ó vós que entrais". Uma piscadela do autor-demiurgo, por cima dos ombros do personagem, para o leitor inteligente.


MACHO NÃO GANHA FLOR    
Autor: Dalton Trevisan
Editora: Record
Quanto: R$ 24,90 (128 págs.)


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