São Paulo, sábado, 14 de outubro de 2006

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Crítica/contos

Belo e estranho, livro de contos de Noll traz registros urbanos triviais

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A implosão das identidades familiares que, para os expressionistas abstratos, era necessária para fundar o campo de experimentação do ato criador está presente nas narrativas de "A Máquina de Ser", novo livro de contos de João Gilberto Noll. Registros urbanos triviais, como acidentes de trânsito, compras no shoppings, imagens em vitrines, banheiros públicos, tateio de assento na sessão da tarde, sexo casual, velórios, expressões médicas como "entrar em óbito" se sucedem como portas num corredor.
A chave para se seguir tal percurso está formulada pelo próprio livro: "Na língua portuguesa, onde encontraria a palavra justa para dar conta de uma experiência assim sem qualquer passado que a justificasse e, o pior, sem a garantia de desdobramentos?" Trata-se, pois, de compor uma narrativa sem pressuposições de causa e tempo que amenizem o imediatismo das ocasiões contingentes e aleatórias que dão a ver uma subjetividade nua e transitória.
O livro é belo e estranho. Belo pelo estranhamente feio e quase inarticulado que faz saltar à vista. As personagens são esboços, figuras de totalidades indeterminadas ("moça", "todos", "um cara sem camisa", "aquela gente"). Raramente nomes próprios; exceções, como "Nick", não são exceções, pois apenas escavam máscaras por trás do nome. A narrativa é auto-referencial, com histórias que são como vozes em surdina, evidenciando a destituição de origem e de finalidade. O narrador se restringe a acompanhar a personagem como um monoglota ouve uma língua estrangeira ou um cego descortina uma paisagem. De volta à literalidade intransponível, a personagem se torna puro corpo em sucessão de instantes magnéticos, que dispensa a alma e exibe uma teologia à base de vibrações e gemidos, mais de dor que de tesão.
Vários cuidados impedem que as histórias deixem sua literalidade em favor de figurações simbólicas. Por exemplo, o uso ostensivo de "como que", "como se", "feito fosse", que transforma as referências externas em análogos sem consistência, possibilidades remotas da descrição. Também o emprego de fórmulas como "sei lá eu", "sabe-se lá quando", "não sei que mais", "... e tudo", "e tal" infesta as histórias de razões frouxas.
O discurso, desde o início, se dá como verbo inane, impotente para passar do inexprimível à consciência. O mesmo se evidencia no uso de termos que postulam interlocução, não conteúdos: "agora aqui", "ali ó... viu", "ali no alto", "cá embaixo", "agora eu estava ali".
A trava literal do texto encontra sua forma mais impressionante na confusão de registros, que justapõe formas coloquiais ("tipo", "demais da conta", "coice na bunda", "fazer xixi", "no duro!") a frases de teor abstrato, mal construídas ou empoladas ("dominava melhor as ocorrências intramuros do nosso ninho de infante"; "apalpei a primeira cadeira que se assemelhava a tal objeto à minha trevosa vista").
Há ainda o uso de formas infinitivas forçadas ("módulo de estar", "em volta do nosso entrar"), tudo concorrendo para uma espécie de documentário de ação às cegas, no qual se inscrevem os sentidos do corpo, mas não se escrevem os sentidos da razão: volúpia de sinais, ultimato atrás das fisionomias, andanças sem direção pelos cômodos, movimentos ilhados.
Tais os itinerários da "máquina de ser", de Noll, cujo pulso reduzido ao mínimo se registra no intervalo entre a vontade do nada e a hora da morte.


ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp).

A MÁQUINA DE SER    
Autor: João Gilberto Noll
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 22 (160 págs.)


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