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Crítica/contos
Belo e estranho, livro de contos de Noll traz registros urbanos triviais
ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
A implosão das identidades familiares que, para
os expressionistas abstratos, era necessária para fundar o campo de experimentação do ato criador está presente
nas narrativas de "A Máquina
de Ser", novo livro de contos de
João Gilberto Noll. Registros
urbanos triviais, como acidentes de trânsito, compras no
shoppings, imagens em vitrines, banheiros públicos, tateio
de assento na sessão da tarde,
sexo casual, velórios, expressões médicas como "entrar em
óbito" se sucedem como portas
num corredor.
A chave para se seguir tal percurso está formulada pelo próprio livro: "Na língua portuguesa, onde encontraria a palavra
justa para dar conta de uma experiência assim sem qualquer
passado que a justificasse e, o
pior, sem a garantia de desdobramentos?" Trata-se, pois, de
compor uma narrativa sem
pressuposições de causa e tempo que amenizem o imediatismo das ocasiões contingentes e
aleatórias que dão a ver uma
subjetividade nua e transitória.
O livro é belo e estranho. Belo
pelo estranhamente feio e quase inarticulado que faz saltar à
vista. As personagens são esboços, figuras de totalidades indeterminadas ("moça", "todos",
"um cara sem camisa", "aquela
gente"). Raramente nomes
próprios; exceções, como
"Nick", não são exceções, pois
apenas escavam máscaras por
trás do nome. A narrativa é auto-referencial, com histórias
que são como vozes em surdina, evidenciando a destituição
de origem e de finalidade. O
narrador se restringe a acompanhar a personagem como um
monoglota ouve uma língua estrangeira ou um cego descortina uma paisagem. De volta à literalidade intransponível, a
personagem se torna puro corpo em sucessão de instantes
magnéticos, que dispensa a alma e exibe uma teologia à base
de vibrações e gemidos, mais de
dor que de tesão.
Vários cuidados impedem
que as histórias deixem sua literalidade em favor de figurações simbólicas. Por exemplo, o
uso ostensivo de "como que",
"como se", "feito fosse", que
transforma as referências externas em análogos sem consistência, possibilidades remotas
da descrição. Também o emprego de fórmulas como "sei lá
eu", "sabe-se lá quando", "não
sei que mais", "... e tudo", "e tal"
infesta as histórias de razões
frouxas.
O discurso, desde o início, se
dá como verbo inane, impotente para passar do inexprimível à
consciência. O mesmo se evidencia no uso de termos que
postulam interlocução, não
conteúdos: "agora aqui", "ali ó...
viu", "ali no alto", "cá embaixo",
"agora eu estava ali".
A trava literal do texto encontra sua forma mais impressionante na confusão de registros, que justapõe formas coloquiais ("tipo", "demais da conta", "coice na bunda", "fazer xixi", "no duro!") a frases de teor
abstrato, mal construídas ou
empoladas ("dominava melhor
as ocorrências intramuros do
nosso ninho de infante"; "apalpei a primeira cadeira que se
assemelhava a tal objeto à minha trevosa vista").
Há ainda o uso de formas infinitivas forçadas ("módulo de
estar", "em volta do nosso entrar"), tudo concorrendo para
uma espécie de documentário
de ação às cegas, no qual se inscrevem os sentidos do corpo,
mas não se escrevem os sentidos da razão: volúpia de sinais,
ultimato atrás das fisionomias,
andanças sem direção pelos cômodos, movimentos ilhados.
Tais os itinerários da "máquina
de ser", de Noll, cujo pulso reduzido ao mínimo se registra
no intervalo entre a vontade do
nada e a hora da morte.
ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da
Universidade Estadual de Campinas e autor de
"Máquina de Gêneros" (Edusp).
A MÁQUINA DE SER
Autor: João Gilberto Noll
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 22 (160 págs.)
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