São Paulo, terça-feira, 14 de outubro de 2008

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Terra de cegos


Serei capaz de condenar o xeque e a cultura islâmica que humilha e oprime as suas fêmeas? Não sou

SOU UM HOMEM NOVO . Resolvi mudar de vida. Durante anos, marchei contra. Sempre que havia nova moda intelectual na praça, eu marchava contra. Multiculturalismo? Pós-modernismo? Relativismo? A minha úlcera inchava. Era contra, contra, contra.
Não mais. Cansei de ódios gratuitos, insultado por manadas de esquerdistas politicamente corretos.
Rendo-me. Serei multiculturalista, pós-modernista e relativista a partir de hoje. E, para testar a minha nova carapaça, nada melhor que ler o jornal com o café da manhã de cabeça livre e aberta.
Então encontro história inspiradora. Segundo leio, um xeque na Arábia Saudita lançou uma "fatwa" sobre mulheres que andam na rua com os olhos destapados. O xeque Mohamed Al Habdan defende que mulheres com olhos destapados usam maquiagem (proibida na Arábia Saudita) e cultivam certos prazeres lascivos como, por exemplo, olhar para o mundo em volta. O ideal, diz o xeque, é caminhar apenas com um olho destapado. O meu antigo ser não toleraria semelhante afronta. E, confrontado com o xeque, imagino o velho João Pereira Coutinho, em seu reacionarismo perigoso, perguntando simplesmente onde estão as feministas quando mais precisamos delas.
Obviamente, não estão: uma coisa é acusar o Ocidente de excessos falocêntricos; outra, bem diferente, é sair do Ocidente e lutar pelos direitos das mulheres onde elas são realmente humilhadas e oprimidas. No primeiro caso, o gesto é premiado com um lugar na universidade, ou na mídia. No segundo, com um lugar na cadeia, ou no caixão. As feministas podem ser feministas, mas não são completamente idiotas.
Na Arábia Saudita, as mulheres não têm direitos políticos de qualquer espécie. Não podem votar. Não podem ser eleitas. Não podem, aliás, caminhar sozinhas na rua sem companhia de maridos ou familiares: as autoridades sauditas não toleram atos de "prostituição". E quando uma mulher é violada, o mais certo é ser ela a máxima responsável, punida com prisão e chicotadas.
Conclusão: serei capaz de condenar o xeque e a cultura islâmica que humilha e oprime as suas fêmeas? Não sou. Seguindo a moda multiculturalista, é necessário "compreender" a "autenticidade" de culturas distintas da nossa. Julgá-las não é apenas de uma arrogância insuportável; é, como diria Edward Said, esse gênio que leio agora com fervor e devoção, uma forma de as menorizar pelo exercício do nosso "imperialismo" intelectual. Eles espancam e às vezes matam as suas mulheres; nós, sei lá, costumamos espancar e até matar as nossas moscas. Quem é melhor do que quem?
Até porque o xeque tem alguma razão e, se me permitem, as suas preocupações com a moral e os costumes só peca por defeito. Nada garante que um mulher com um olho destapado não possa continuar a usar maquiagem. E uma pala no olho, como o xeque defende, pode ser um atrativo suplementar em certos circuitos sadomasoquistas, onde os zarolhos são reis. O ideal era tapar os dois olhos e aconselhar as mulheres islâmicas a orientarem-se pelo nariz.
Não é impossível: os cães costumam fazê-lo com sucesso, desenvolvendo as células receptoras do olfato de uma forma que está interdita à generalidade dos humanos. E se os cães conseguem fazê-lo, por que não as mulheres? Substituir os olhos pelo nariz traria consideráveis vantagens para as mulheres islâmicas e para o desenvolvimento moral e até econômico de toda região.
Com os olhos tapados, não haveria maquiagem, não haveria lascívia, não haveria tentação: a moral estaria salvaguardada pela transformação da mulher em múmia.
Mas não numa múmia qualquer: se as mulheres islâmicas sonham com a plena emancipação, o fato de terem os seus narizes desenvolvidos permitiria empregá-las em vários ramos de atividade. Imagino, sem dificuldade, o uso de mulheres sauditas em aeroportos ou investigações criminais, devidamente treinadas para farejarem malas ou rastros com odores suspeitos. Não excluo que algumas delas pudessem usar coleira e serem guias para cegos de todas as idades. E haveria espaço para que as melhores guardassem os seus lares, ladrando ao mínimo sinal de estranhos.
Com o tempo, os países islâmicos acabariam por respeitar as suas mulheres-caninas. E, no recato doméstico, o marido trocaria a violência habitual por um afago ou um biscoito sempre que a mulher trouxesse o jornal na boca.

jpcoutinho@folha.com.br


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