São Paulo, quarta-feira, 14 de outubro de 2009

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MARCELO COELHO

Desejos de criança


Muitas vezes não percebemos o que pode haver de moralizante na crítica ao consumismo


UM HELICÓPTERO com controle remoto que voa de verdade. Uma viagem com tudo pago para a Disney. Uma completa redecoração no quarto, inspirada no Castelo da Barbie.
Nada mais previsível e arbitrário, e nada mais fútil e importante ao mesmo tempo, do que esse tipo de desejos infantis. Os pais tendem a se resignar aos pedidos dos seus filhos e a atendê-los na medida do possível. Mas fica sempre a sensação de que tantos brinquedos perdem rapidamente o seu valor, e que não eram de fato necessários à felicidade da criança.
Ainda mais quando se sabe que as crianças estão sendo teleguiadas pelos seus amiguinhos, e que todos -pais, filhos, parentes e colegas de escola- obedecem à pressão da publicidade.
Apesar de algumas iniciativas muito divulgadas, não estou vendo nenhum autocontrole das agências de propaganda nessa área. Pelo menos, não na área de maior importância estratégica, os canais de programação infantil na TV a cabo.
Nos meus momentos de maior otimismo, penso que talvez isso tenha um efeito educativo. As crianças logo aprendem a perceber a diferença entre o que o brinquedo promete no anúncio e o pouco que é capaz de fazer na realidade.
Um carrinho banal aparece cantando os pneus numa estrada quilométrica do Arizona. Uma vez comprado, não vem com trilha sonora nem com os cactos e areais do Oeste americano; terá de ser empurrado a dedo no carpete do apartamento.
Bela e cara inutilidade, afinal. E de que adianta comprar um brinquedo que logo quebra e, mais cedo ainda, será esquecido? A própria fada madrinha haveria de se cansar, se existisse, atendendo a tantos desejos, sempre renovados.
Mas vi, nesta segunda-feira, Dia da Criança, um anúncio memorável no jornal. É de uma organização beneficente internacional, chamada "Make a Wish" (faça um desejo), que conta com um site no Brasil (www.makeawish.org.br).
A ideia é atender a desejos de crianças que tenham graves e talvez incuráveis problemas de saúde. Em muitos casos, os pedidos são bastante triviais: um videogame, uma boneca falante, um aparelho de som.
Mas há, por exemplo, o caso do Gabriel, de seis anos, que passou por um transplante de fígado e tem um linfoma. Seu desejo era ser policial. Arranjaram uma visita de Gabriel a um batalhão da Polícia Militar. Um sargento o recebeu; deram-lhe uma farda do seu tamanho, levaram-no para um passeio numa viatura, autorizando-o a tocar a sirene. Gabriel almoçou no refeitório dos policiais; aprendeu a marchar e, no fim do dia, foi promovido a oficial.
Fora o que a história tem de comovente em si, no que aponta para um futuro que talvez a doença impeça de chegar, há uma beleza e um ensinamento especiais, acho, na iniciativa dessa instituição.
É que se costuma sempre dividir as coisas entre o "essencial" e o "supérfluo". Se for para ajudar pessoas necessitadas, ora bolas, que comida e remédio, teto e roupa sejam providenciados, e não se fala mais nisso.
Por que gastar tempo e dinheiro atendendo ao capricho de uma menina que gostaria, por exemplo, de pintar seu quarto de rosa, se já é muito ajudar na sua alimentação?
Criticamos tanto o consumismo, com bons motivos aliás, que muitas vezes não percebemos o que pode haver de moralizante, de puritano nessa atitude.
Nada nos autoriza a dizer que os desejos de pintar o quarto de rosa, de ver o mar, de passear de avião, sejam menos importantes para uma criança doente do que os remédios que ela toma. Por mais cruel que seja, é importante pensar também na hipótese de que os remédios poderão não funcionar.
A sobrevivência de uma pessoa, é claro, está sujeita às leis da biologia. Mas, para alguém sobreviver ou simplesmente viver, mais do que condições materiais são necessárias. É preciso ter um motivo, uma razão para continuar vivo.
É preciso saber que, contra todas as possibilidades objetivas, e acima dos limites de uma doação material qualquer (comida, cobertores), também o supérfluo, o fantasioso, o inatingível podem estar ao alcance das mãos. E que a vida, mais do que uma luta pela necessidade imediata, só será humana e só valerá a pena se puder, por alguns instantes, assumir a forma de um parque de diversões, de um quarto rosa ou de uma loja de brinquedos, com prateleiras a perder de vista.

coelhofsp@uol.com.br


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