São Paulo, quarta-feira, 14 de novembro de 2001

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MARCELO COELHO

"Lavoura" e os indícios de uma obra-prima

Finalmente "Lavoura Arcaica" estreou em São Paulo. Digo "finalmente" não porque o filme de Luiz Fernando Carvalho tenha demorado tanto assim para entrar em cartaz, mas porque era intenso o clima de entusiasmo e excitação que se criara em torno da obra; já estava consagrada antes mesmo de seu lançamento.
Isso acabou me provocando um efeito estranho: é como se, em vez de simplesmente assistir a um filme, eu estivesse assistindo à demonstração de que aquele filme era uma obra-prima.
Tudo em "Lavoura Arcaica" parece suscitar, talvez impor, ou mesmo exigir, essa conclusão: a exuberância visual, as ênfases da trilha sonora, a opulência do texto de Raduan Nassar, os acometimentos viscerais do elenco. O público aplaude no final, como se tivesse acabado de ouvir uma sinfonia de Mahler: muito satisfeito e não sei se um pouco aliviado também.
Como se sabe, "Lavoura Arcaica" é um filme longo. Não que seja chato, ao contrário. O interesse se renova constantemente graças à beleza inquietante das imagens e ao poder da narrativa, que, embora lenta, não parece afrouxar nunca.
Se a duração do filme (165 minutos, o que nem é tanto assim) tende a incomodar um pouco, não é porque prejudique o ritmo da história, mas, sim, porque terminou, a meu ver, explicitando demais as intenções, os recursos, as ambições do diretor. É como se Luiz Fernando Carvalho não quisesse deixar ninguém sair do cinema sem concordar que ele é de fato genial.
Já estou escrevendo um texto mais antipático do que eu pretendia. Nada mais antipático, aliás, do que criticar alguém por ter qualidades em excesso.
De resto, "Lavoura Arcaica" tem todas as razões para ser excessivo, barroco, quase ostentatório em sua riqueza estilística. O filme consegue traduzir visualmente toda a beleza literária do livro de Raduan Nassar.
As primeiras cenas, carregadas de sombras, distorções de perspectiva, ângulos inusitados, convidam o espectador a fazer quase que um exercício de adivinhação: onde está o rosto, onde está o corpo do personagem? Até que finalmente o quadro faz sentido. O mesmo ocorre no primeiro capítulo do romance: só aos poucos percebemos que o autor está descrevendo uma cena de masturbação.
Sem dúvida, é essa a estrutura do livro inteiro: só nas últimas páginas tomamos conhecimento da dimensão completa da tragédia familiar que está sendo narrada. O tema do filho pródigo, ambientado numa família de imigrantes libaneses no interior brasileiro, vai ganhando aos poucos uma densidade passional, uma violência desmedida. Desejo incestuoso, impulsividade selvagem e sangrenta, patriarcalismo e fúria irrompem depois de uma lenta preparação, muito virtuosística tanto do ponto de vista do estilo quanto do controle que exerce sobre as expectativas do leitor.
No romance, a riqueza do estilo é complementar à brutalidade do que está sendo contado. É como se estivesse em jogo o contraste entre o que é da ordem da pura violência e o que é da ordem da palavra; entre o que é da ordem da civilização, da escrita, da comunicação humana, e aquilo que é pura natureza, pura reação instintiva, apelo do sangue.
Uma das coisas mais interessantes do filme de Luiz Fernando Carvalho está no modo com que soube dar uma equivalência visual a esse contraste. Ao mesmo tempo em que mostra imagens belíssimas e mesmo rebuscadas, a câmera parece muito "neutra", objetiva, quase fria. Se muitas vezes o espectador tem de decifrar visualmente o que está sendo mostrado, é comum também que uma cena apenas reitere o que diz a voz do narrador em "off".
Num trecho, por exemplo, o narrador se refere a um bule, a um pedaço de pão, à manteigueira do café da manhã -e a câmera fielmente nos mostra o bule, o pão, a manteigueira. O cuidado puramente ilustrativo, "literal", da câmera joga com a sofisticação visual das imagens, do mesmo modo que o estilo elevado do livro contrastava com a crueza da tragédia.
Fico sem saber se é por isso que o filme acaba, a meu ver, chamando demais a atenção sobre si mesmo: como se o seu verdadeiro tema fosse menos o drama familiar contado no livro, e mais o desafio, o problema de como adaptar em imagens uma obra literária.
É que, a meu ver, não se trata apenas de traduzir em imagens as frases de Raduan Nassar, mas de expor, com personagens de carne e osso e situações reais, aquilo que no livro poderia constar apenas como alusão, como pormenor circunstancial.
Dou um exemplo. No livro, o encontro amoroso entre o narrador e sua irmã, numa casa abandonada, dispensa diálogos e explicações mais detalhadas: justamente é no que não se diz, no que foge às convenções da psicologia realista, que está a força do que acontece; e como o livro é contado quase que como uma confissão, o impronunciável desempenha aqui um papel fundamental.
No filme, as ações dos personagens nessa cena exigiriam algum diálogo, alguma preparação psicológica: a opção do diretor foi a de simplesmente "mostrar" a cena. Ainda que muito bonita, ela cumpre apenas uma função ilustrativa. É a encenação, a "tradução visual" precisa daquilo que foi escrito no romance.
É possível que seja convencionalismo de minha parte, o de exigir diálogos realistas em cenas desse tipo. O efeito que o filme acaba tendo, entretanto, é o de empalidecer, até por ser fiel demais, o drama contado no romance. Tive a impressão de que enormes recursos estilísticos foram mobilizados para contar um caso banal; exatamente o contrário do que acontecia no romance, onde a excepcionalidade da tragédia é que justificava tantas belezas de linguagem.
O mais provável de tudo é que eu esteja simplesmente sendo implicante. Não é todo dia que vemos um filme como "Lavoura Arcaica"; daí, talvez, minha sensação de desconforto.



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