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MARCELO COELHO
"Lavoura" e os indícios de uma obra-prima
Finalmente "Lavoura Arcaica" estreou em São Paulo.
Digo "finalmente" não porque o
filme de Luiz Fernando Carvalho
tenha demorado tanto assim para entrar em cartaz, mas porque
era intenso o clima de entusiasmo
e excitação que se criara em torno
da obra; já estava consagrada antes mesmo de seu lançamento.
Isso acabou me provocando um
efeito estranho: é como se, em vez
de simplesmente assistir a um filme, eu estivesse assistindo à demonstração de que aquele filme
era uma obra-prima.
Tudo em "Lavoura Arcaica"
parece suscitar, talvez impor, ou
mesmo exigir, essa conclusão: a
exuberância visual, as ênfases da
trilha sonora, a opulência do texto de Raduan Nassar, os acometimentos viscerais do elenco. O público aplaude no final, como se tivesse acabado de ouvir uma sinfonia de Mahler: muito satisfeito
e não sei se um pouco aliviado
também.
Como se sabe, "Lavoura Arcaica" é um filme longo. Não que seja chato, ao contrário. O interesse
se renova constantemente graças
à beleza inquietante das imagens
e ao poder da narrativa, que, embora lenta, não parece afrouxar
nunca.
Se a duração do filme (165 minutos, o que nem é tanto assim)
tende a incomodar um pouco,
não é porque prejudique o ritmo
da história, mas, sim, porque terminou, a meu ver, explicitando
demais as intenções, os recursos,
as ambições do diretor. É como se
Luiz Fernando Carvalho não quisesse deixar ninguém sair do cinema sem concordar que ele é de fato genial.
Já estou escrevendo um texto
mais antipático do que eu pretendia. Nada mais antipático, aliás,
do que criticar alguém por ter
qualidades em excesso.
De resto, "Lavoura Arcaica"
tem todas as razões para ser excessivo, barroco, quase ostentatório em sua riqueza estilística. O
filme consegue traduzir visualmente toda a beleza literária do
livro de Raduan Nassar.
As primeiras cenas, carregadas
de sombras, distorções de perspectiva, ângulos inusitados, convidam o espectador a fazer quase
que um exercício de adivinhação:
onde está o rosto, onde está o corpo do personagem? Até que finalmente o quadro faz sentido. O
mesmo ocorre no primeiro capítulo do romance: só aos poucos
percebemos que o autor está descrevendo uma cena de masturbação.
Sem dúvida, é essa a estrutura
do livro inteiro: só nas últimas páginas tomamos conhecimento da
dimensão completa da tragédia
familiar que está sendo narrada.
O tema do filho pródigo, ambientado numa família de imigrantes
libaneses no interior brasileiro,
vai ganhando aos poucos uma
densidade passional, uma violência desmedida. Desejo incestuoso,
impulsividade selvagem e sangrenta, patriarcalismo e fúria irrompem depois de uma lenta preparação, muito virtuosística tanto do ponto de vista do estilo
quanto do controle que exerce sobre as expectativas do leitor.
No romance, a riqueza do estilo
é complementar à brutalidade do
que está sendo contado. É como se
estivesse em jogo o contraste entre
o que é da ordem da pura violência e o que é da ordem da palavra;
entre o que é da ordem da civilização, da escrita, da comunicação humana, e aquilo que é pura
natureza, pura reação instintiva,
apelo do sangue.
Uma das coisas mais interessantes do filme de Luiz Fernando
Carvalho está no modo com que
soube dar uma equivalência visual a esse contraste. Ao mesmo
tempo em que mostra imagens
belíssimas e mesmo rebuscadas, a
câmera parece muito "neutra",
objetiva, quase fria. Se muitas vezes o espectador tem de decifrar
visualmente o que está sendo
mostrado, é comum também que
uma cena apenas reitere o que diz
a voz do narrador em "off".
Num trecho, por exemplo, o
narrador se refere a um bule, a
um pedaço de pão, à manteigueira do café da manhã -e a câmera fielmente nos mostra o bule, o
pão, a manteigueira. O cuidado
puramente ilustrativo, "literal",
da câmera joga com a sofisticação
visual das imagens, do mesmo
modo que o estilo elevado do livro
contrastava com a crueza da tragédia.
Fico sem saber se é por isso que
o filme acaba, a meu ver, chamando demais a atenção sobre si
mesmo: como se o seu verdadeiro
tema fosse menos o drama familiar contado no livro, e mais o desafio, o problema de como adaptar em imagens uma obra literária.
É que, a meu ver, não se trata
apenas de traduzir em imagens as
frases de Raduan Nassar, mas de
expor, com personagens de carne
e osso e situações reais, aquilo que
no livro poderia constar apenas
como alusão, como pormenor circunstancial.
Dou um exemplo. No livro, o
encontro amoroso entre o narrador e sua irmã, numa casa abandonada, dispensa diálogos e explicações mais detalhadas: justamente é no que não se diz, no que
foge às convenções da psicologia
realista, que está a força do que
acontece; e como o livro é contado
quase que como uma confissão, o
impronunciável desempenha
aqui um papel fundamental.
No filme, as ações dos personagens nessa cena exigiriam algum
diálogo, alguma preparação psicológica: a opção do diretor foi a
de simplesmente "mostrar" a cena. Ainda que muito bonita, ela
cumpre apenas uma função ilustrativa. É a encenação, a "tradução visual" precisa daquilo que
foi escrito no romance.
É possível que seja convencionalismo de minha parte, o de exigir diálogos realistas em cenas
desse tipo. O efeito que o filme
acaba tendo, entretanto, é o de
empalidecer, até por ser fiel demais, o drama contado no romance. Tive a impressão de que
enormes recursos estilísticos foram mobilizados para contar um
caso banal; exatamente o contrário do que acontecia no romance,
onde a excepcionalidade da tragédia é que justificava tantas belezas de linguagem.
O mais provável de tudo é que
eu esteja simplesmente sendo implicante. Não é todo dia que vemos um filme como "Lavoura Arcaica"; daí, talvez, minha sensação de desconforto.
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