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CONTARDO CALLIGARIS
Suzane: pano de fundo
É sábado . Parece que, na cidade, só se fala da confissão
de Suzane von Richthofen. Com o
namorado e o irmão dele, ela levou a cabo o assassinato de seus
pais, que se opunham ao namoro.
Calma, não é necessário trancar
os quartos; filhos e filhas não nos
matarão nesta noite. Mas muitos
pais se perguntam: a casa dos
Richthofen era muito diferente da
nossa?
À noite, vou ao shopping Frei
Caneca, para assistir a "Madame
Satã", e João, motorista do táxi
Abreu que me leva, comenta sobre Suzane: "Matar os pais por
causa do namorado é safadeza
mesmo". Parece-lhe intolerável
que a cumplicidade com namorados e amigos prevaleça sobre a
aliança entre pais e filhos. Concordo, mas receio que a coisa não
seja uma novidade.
Enquanto espero a hora do filme, erram pelos corredores do
shopping vários grupos de adolescentes. São coesos, cada grupo
tem um "look" próprio: um corte
de cabelo, uma maneira de vestir
as calças, um jeito de andar. Passam três meninos de oito ou nove
anos, todos com um brinco na
orelha direita. São graciosos, mas
o que estão fazendo de noite, num
shopping, sozinhos?
É uma banalidade: cada vez
mais, na vida dos jovens, na escolha de suas condutas e na invenção de sua identidade íntima, os
companheiros contam mais do
que os pais. O pai de Suzane não
gostou disso, reagiu e morreu coberto de razão, pois ficou demonstrado que as companhias de
Suzane eram, bem como ele pensava, péssimas.
Em 1998, o livro de Judith Rich
Harris "Diga-me com Quem Anda..." provocou um pequeno tumulto no mundo da psicologia.
Rich Harris declarava que os jovens não são (mais) o efeito dos
cuidados que receberam na sua
primeira infância. Pouco importa
que, com suas crianças, você seja
carinhoso ou estupidamente ausente: de qualquer forma, a influência do grupo de amigos decidirá quem serão seus filhos. Os jovens se formam em relações horizontais, entre companheiros e
iguais. As relações verticais, hierárquicas (com os pais e outros
adultos dotados de autoridade),
contam cada vez menos.
Não é de estranhar. A personalidade moderna vive numa permanente consulta ao olhar dos
outros: existo porque os companheiros de meu grupo, os meus semelhantes, me aprovam e me tratam como um membro do bando.
Devo quem eu sou a eles, não à
bênção de alguém acima de mim.
A cumplicidade e o mimetismo
nas parceiradas são mais importantes do que os imperativos da
autoridade.
Parêntese: essa mudança não se
deu contra ou apesar dos adultos.
Os pais de hoje preferem ser bem-vistos e amados por seus filhos a
ser respeitados e obedecidos. Em
suma, a subjetividade dos pais
também mudou com a modernidade, e a família torna-se, aos
poucos, uma parceria horizontal.
Ora, ser mais membro de seu
grupo do que filho de seus pais
acarreta algumas consequências,
que constituem o pano de fundo
do crime de Suzane & cia. Para
quem prefere o grupo à hierarquia familiar, o que vem dos pais
não tem valor simbólico. As interdições aparecem como a expressão de uma autoridade que se justifica só na violência; a reação, se
acontecer, será também violenta.
Da mesma forma, o que se espera
que os pais transmitam não são
princípios ou exemplos, apenas
bens materiais: a herança é só
grana.
Outra consequência é a urgência. As relações verticais ensinavam a pacientar: um dia, você subirá na hierarquia, será adulto e
tomará nosso lugar. Mas, para
quem vive de relações horizontais, não há nenhuma razão para
esperar. Quem estiver me atrasando que saia do caminho.
A droga, além de reforçar a
cumplicidade do grupo (à diferença dos babacas, nós sabemos o
que é bom), satisfaz e encoraja a
urgência do querer. Não espere, o
futuro sonhado já está aqui, ao
alcance da mão, tome.
Depois de assistir a "Madame
Satã", na falta da Lapa carioca
dos anos 30, vou a pé até a Boca
do Lixo, para prolongar o prazer
do filme. Numa lanchonete na esquina da Augusta com a Dona
Antônia de Queiroz, participo de
outra conversa sobre a confissão
de Suzane. Uma figura saída do
filme de Karim Ainouz exclama:
"Coisa de louco, logo num bairro
bom". Aparentemente, segundo
ele, o crime contradiz a geografia
da moralidade. Apesar de todas
as revelações de Freud, a casa de
família de classe média e de bairro bom continua aparecendo como o lugar do bem. E a Lapa ou a
Boca do Lixo, como seus opostos.
Mas há crimes -quase sempre
às escondidas, mas desta vez às
claras- que nos lembram qual é
o preço do bem-estar moderno,
que é próprio das casas dos bairros bons. No caso, o preço é uma
subjetividade sem mandato, que,
para descobrir a que veio, só sabe
entregar-se ao conformismo dos
pequenos grupos e exigir satisfações imediatas.
Mais um detalhe: muitos acharam que, no enterro dos pais, Suzane fingiu seu choro e que seu
pranto seria a prova de seu cinismo. Mas uma subjetividade sem
mandato não precisa fingir. Basta-lhe conformar-se ao grupo,
conquistá-lo. Na parceria dos
enlutados, ao redor da fossa, a órfã inconsolável era uma identidade ideal. E Suzane, aposto, chorou
de verdade.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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