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NELSON ASCHER
Por que na França e por que agora?
É um velho costume: quem
não gosta da mensagem pune o mensageiro. A sistematização desse hábito se chama censura e seu refinamento, auto-censura. Eis um exemplo: segundo Claire Cozens do "MediaGuardian"
(10/11/05), Jean-Claude Dassier,
diretor-geral da agência noticiosa
LCI, que pertence à emissora
francesa TF1, "admitiu estar censurando sua cobertura dos distúrbios no país por medo de incentivar o apoio a políticos de extrema-direita."
Enquanto isso, de acordo com
algumas fontes, o Canal + francês
teria mostrado insurgentes cantarolando insultos ao Ministro do
Interior e, para explicitá-los,
transcreveu-os nas legendas como
"Sarkozy, fascista". Vários espectadores, todavia, parece que ouviram os jovens gritar "Sarkozy, sale juif" (judeu sujo). Talvez nem
seja auto-censura: afinal, está ficando cada vez mais difícil distinguir entre ambos os impropérios.
Voltamos, agora, à nossa programação normal.
Há uma cena que não me sai da
memória. Genebra, verão de 94.
Jantando à beira do lago, eu vi, à
mesa em frente, um jovem casal
muçulmano. Ele, de jeans, camisa
esporte xadrez e cabelo bem cortado, ostentava apenas um bigodinho. Ela, coberta de alto a baixo com vestes negras, comia, erguendo discretamente o canto do
véu a cada garfada, sua raclette.
De resto, conversavam amavelmente como qualquer casal feliz.
É fácil imaginar o que a moça
penava no calor de 35º C e mais
fácil ainda acusar seu marido de
hipocrisia: ele, um beneficiário do
que o Ocidente tem de bom; ela,
carregando nas costas as muralhas de certo Oriente. Em termos
individuais, a indignação (não
só) das feministas seria justa. Se
levarmos em conta, porém, interesses comunitários, ambos colaboravam entre si, cada qual desempenhando seu papel. Mas como, quando mesmo seus trajes
declaravam que, se ele estava
aberto ao mundo exterior, inclusive às mulheres deste, ela permanecia interditada até ao olhar dos
homens "de fora"? Resposta: exatamente assim. Pois quase todas
as sociedades tradicionais gostam
de se expandir, de se afirmar e,
para tanto, as islâmicas desenvolveram um recurso eficiente.
Duas comunidades que se encontrem estão aptas a se integrar
caso queiram fazer determinados
compromissos. Além da comunicação, são duas as vias principais:
a cooperação econômica e a exogamia (A troca, diria Lévi-Strauss, de signos, mulheres e
bens). A cooperação econômica
pressupõe que se permita aos
membros de uma operarem, mais
ou menos em igualdade de condições, no seio da que os recebe -e
fazê-lo com expectativas realistas
de ascensão social. Fluxos de imigrantes que se integraram com
sucesso o devem em geral ao empenho recompensado de seus homens. Quanto à exogamia, seus
agentes são, sobretudo, as mulheres, que se sentirão tentadas a deixar o grupo de origem especialmente caso sua prole tenha chances de ingressar na coletividade
maior.
O que aconteceu na França é,
por um lado, que as possibilidades de ascensão dos imigrantes
norte-africanos foram de fato bloqueadas. O modelo francês garante emprego a quem o tenha e
desemprego permanente (embora
remunerado) a quem ainda não
entrou no mercado de trabalho. A
estratificação social é inflexível e
o único caminho estreito para cima passa pelo Estado. A iniciativa privada é desencorajada. Tal
modelo, impedindo os imigrantes
de enriquecerem graças a seu esforço, não lhes facultou a formação de uma classe média que
criasse vínculos com a nativa. Já o
proletariado francês, este, organizado em agremiações poderosas,
via os recém-chegados como competidores a serem rejeitados e
confinados ao lumpesinato.
Desse modo, a França obstruiu
a verdadeira integração econômica dos norte-africanos (e, em
diferentes medidas, a de outros
imigrantes: os asiáticos, centro-africanos e cerca de um milhão de
portugueses que se estabeleceram
no país).
Mas, e a via alternativa? Após
muitos casamentos mistos, haveria, a esta altura, um bom número de jovens mestiços, euro-norte-africanos, franco-maghrebinos,
cuja situação sócio-econômica seria melhor que a dos avós maternos, mas que teriam interesse
tanto em apaziguar a disputa
desses com os paternos, como, para "normalizar" sua ambígua
condição etno-religiosa, em apostar na confluência de todos. Uma
síntese, como a de um Islã francês
ou ocidentalizado, cria-se assim,
não por decreto governamental.
E, não obstante a xenofobia européia, diversos fatores teriam levado homens franceses a desposar
mulheres norte-africanas e estas a
romperem os laços com um ambiente pobre e/ou repressivo, algo
que, depois de meio século, não
ocorreu.
E aqui começa a fazer sentido a
cena que presenciei em Genebra.
Tradicionalmente o Islã penaliza
a saída de seus membros. A apostasia de um homem é punível como, num Exército, a deserção.
Ele, em compensação, pode se casar com mulheres de religiões distintas que, por seu turno, nem sequer precisam se converter. Seus
filhos, porém, serão automaticamente muçulmanos. Quanto às
muçulmanas, elas não devem
nem abandonar a fé, nem se casar
fora do grupo. É controlando o
fluxo de mulheres, assegurando
que todo homem terá acesso exclusivo às do grupo e facultativo
às de fora, que uma comunidade
dessas garante sua coesão e crescimento. Isso, no entanto, inibindo a miscigenação, desestimula
uma minoria economicamente
excluída de usar a exogamia para
se misturar com a maioria.
A integração dos norte-africanos na França foi, portanto, subvertida por causa de dois monopólios desiguais, mas combinados, ou seja, porque os franceses
negaram aos imigrantes seus empregos, enquanto estes negaram
aos franceses suas mulheres.
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