São Paulo, segunda-feira, 14 de novembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NELSON ASCHER

Por que na França e por que agora?

É um velho costume: quem não gosta da mensagem pune o mensageiro. A sistematização desse hábito se chama censura e seu refinamento, auto-censura. Eis um exemplo: segundo Claire Cozens do "MediaGuardian" (10/11/05), Jean-Claude Dassier, diretor-geral da agência noticiosa LCI, que pertence à emissora francesa TF1, "admitiu estar censurando sua cobertura dos distúrbios no país por medo de incentivar o apoio a políticos de extrema-direita."
Enquanto isso, de acordo com algumas fontes, o Canal + francês teria mostrado insurgentes cantarolando insultos ao Ministro do Interior e, para explicitá-los, transcreveu-os nas legendas como "Sarkozy, fascista". Vários espectadores, todavia, parece que ouviram os jovens gritar "Sarkozy, sale juif" (judeu sujo). Talvez nem seja auto-censura: afinal, está ficando cada vez mais difícil distinguir entre ambos os impropérios.
Voltamos, agora, à nossa programação normal.
Há uma cena que não me sai da memória. Genebra, verão de 94. Jantando à beira do lago, eu vi, à mesa em frente, um jovem casal muçulmano. Ele, de jeans, camisa esporte xadrez e cabelo bem cortado, ostentava apenas um bigodinho. Ela, coberta de alto a baixo com vestes negras, comia, erguendo discretamente o canto do véu a cada garfada, sua raclette. De resto, conversavam amavelmente como qualquer casal feliz.
É fácil imaginar o que a moça penava no calor de 35º C e mais fácil ainda acusar seu marido de hipocrisia: ele, um beneficiário do que o Ocidente tem de bom; ela, carregando nas costas as muralhas de certo Oriente. Em termos individuais, a indignação (não só) das feministas seria justa. Se levarmos em conta, porém, interesses comunitários, ambos colaboravam entre si, cada qual desempenhando seu papel. Mas como, quando mesmo seus trajes declaravam que, se ele estava aberto ao mundo exterior, inclusive às mulheres deste, ela permanecia interditada até ao olhar dos homens "de fora"? Resposta: exatamente assim. Pois quase todas as sociedades tradicionais gostam de se expandir, de se afirmar e, para tanto, as islâmicas desenvolveram um recurso eficiente.
Duas comunidades que se encontrem estão aptas a se integrar caso queiram fazer determinados compromissos. Além da comunicação, são duas as vias principais: a cooperação econômica e a exogamia (A troca, diria Lévi-Strauss, de signos, mulheres e bens). A cooperação econômica pressupõe que se permita aos membros de uma operarem, mais ou menos em igualdade de condições, no seio da que os recebe -e fazê-lo com expectativas realistas de ascensão social. Fluxos de imigrantes que se integraram com sucesso o devem em geral ao empenho recompensado de seus homens. Quanto à exogamia, seus agentes são, sobretudo, as mulheres, que se sentirão tentadas a deixar o grupo de origem especialmente caso sua prole tenha chances de ingressar na coletividade maior.
O que aconteceu na França é, por um lado, que as possibilidades de ascensão dos imigrantes norte-africanos foram de fato bloqueadas. O modelo francês garante emprego a quem o tenha e desemprego permanente (embora remunerado) a quem ainda não entrou no mercado de trabalho. A estratificação social é inflexível e o único caminho estreito para cima passa pelo Estado. A iniciativa privada é desencorajada. Tal modelo, impedindo os imigrantes de enriquecerem graças a seu esforço, não lhes facultou a formação de uma classe média que criasse vínculos com a nativa. Já o proletariado francês, este, organizado em agremiações poderosas, via os recém-chegados como competidores a serem rejeitados e confinados ao lumpesinato.
Desse modo, a França obstruiu a verdadeira integração econômica dos norte-africanos (e, em diferentes medidas, a de outros imigrantes: os asiáticos, centro-africanos e cerca de um milhão de portugueses que se estabeleceram no país).
Mas, e a via alternativa? Após muitos casamentos mistos, haveria, a esta altura, um bom número de jovens mestiços, euro-norte-africanos, franco-maghrebinos, cuja situação sócio-econômica seria melhor que a dos avós maternos, mas que teriam interesse tanto em apaziguar a disputa desses com os paternos, como, para "normalizar" sua ambígua condição etno-religiosa, em apostar na confluência de todos. Uma síntese, como a de um Islã francês ou ocidentalizado, cria-se assim, não por decreto governamental. E, não obstante a xenofobia européia, diversos fatores teriam levado homens franceses a desposar mulheres norte-africanas e estas a romperem os laços com um ambiente pobre e/ou repressivo, algo que, depois de meio século, não ocorreu.
E aqui começa a fazer sentido a cena que presenciei em Genebra. Tradicionalmente o Islã penaliza a saída de seus membros. A apostasia de um homem é punível como, num Exército, a deserção. Ele, em compensação, pode se casar com mulheres de religiões distintas que, por seu turno, nem sequer precisam se converter. Seus filhos, porém, serão automaticamente muçulmanos. Quanto às muçulmanas, elas não devem nem abandonar a fé, nem se casar fora do grupo. É controlando o fluxo de mulheres, assegurando que todo homem terá acesso exclusivo às do grupo e facultativo às de fora, que uma comunidade dessas garante sua coesão e crescimento. Isso, no entanto, inibindo a miscigenação, desestimula uma minoria economicamente excluída de usar a exogamia para se misturar com a maioria.
A integração dos norte-africanos na França foi, portanto, subvertida por causa de dois monopólios desiguais, mas combinados, ou seja, porque os franceses negaram aos imigrantes seus empregos, enquanto estes negaram aos franceses suas mulheres.


Texto Anterior: Quadrinhos: Antologia traz clássicos em formato pornô
Próximo Texto: Livros: Adélia Prado faz reflexão sobre a morte e o inefável
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.