São Paulo, sábado, 14 de novembro de 2009

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RODAPÉ LITERÁRIO

Vidas e miragens exemplares


Em "O Desafio Biográfico", o historiador François Dosse discute as origens da biografia e suas mutações


MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"FEBRE BIOGRÁFICA" é a expressão que o historiador francês François Dosse utiliza para definir a onda que nas últimas décadas inundou livrarias e listas de mais vendidos. Os leitores de Fernando Morais (autor de biografias de Assis Chateaubriand e de Paulo Coelho) ou de Ruy Castro (biógrafo de Garrincha, Carmen Miranda, Nelson Rodrigues) conhecem bem esse fenômeno, que no Brasil aclimatou a vertente anglo-saxônica do gênero.
Em "O Desafio Biográfico", Dosse não se debruça sobre essa tendência, que se aproxima do biografado através de um acúmulo extraordinário de fatos e documentos, às vezes ofuscando as estruturas mais profundas de uma época. Seu foco são justamente as biografias que permitem uma contemplação do pano de fundo social -e que trazem uma questão latente: por que esse gênero, que remonta às "Vidas Paralelas", de Plutarco, ou à "Vida dos 12 Césares", de Suetônio, viveu um período de eclipse nos séculos 19 e 20, antes de ser reabilitado?
Numa era em que as humanidades reivindicavam o status de "ciências" humanas, explica Dosse, não havia espaço para o fetichismo implícito no ato de vasculhar arquivos. Antes, sob o arco temporal que leva dos gregos à sociedade medieval, existiu o que ele chama de "idade heroica" do gênero biográfico, no qual a noção de "bios" dizia respeito menos à vida do que à maneira de viver: "Num mundo em que o indivíduo só existe por sua capacidade de encarnar um tipo, uma função social, as biografias se limitam a desenhar o retrato de personagens representativas dos valores esperados".
Essas vidas exemplares, que misturam fatos autênticos e relatos míticos para "perpetuar pelo "exemplum" um certo número de virtudes morais" deriva, na Idade Média, para a hagiografia, a biografia de santos, em que a virtude obedece à lógica da graça e do milagre. Nos dois casos (antigo e medieval), o discurso biográfico está apartado da historiografia, com o qual vai se encontrar muito tardiamente, na era da biografia "modal", em que a trajetória do indivíduo dá acesso às categorias mentais de uma sociedade. Mesmo aqui, porém, existe tensão entre historiadores e biógrafos que não hesitam em preencher lacunas com imaginação romanesca.
Sob o impacto da psicanálise e de uma antropologia atenta ao particular, surge o que ele denomina "idade hermenêutica", incorporando as miragens de quem contempla o outro com empatia ou antipatia (Sartre escrevendo sobre Flaubert; Ian Kershaw, sobre Hitler).
Dosse, entretanto, parece mais atento às "biografias intelectuais" do que ao voyeurismo atual, que equaliza artistas, pensadores e personagens midiáticas.


O DESAFIO BIOGRÁFICO

Autor: François Dosse
Tradução: Gilson César Cardoso de Souza
Editora: Edusp
Quanto: R$ 65 (440 págs.)
Avaliação: ótimo




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