São Paulo, quinta-feira, 14 de dezembro de 2006

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Estudos analisam inclusão "na marra" de periféricos

Para pesquisadores, produções culturais não precisam mais de legitimação do centro

Ivana Bentes, da UFRJ, diz que televisão, de forma "esquizofrênica", idealiza e criminaliza a periferia ao mesmo tempo


Marlene Bergamo/Folha Imagem
Antenas de TV no Jardim Damasceno, na zona norte de SP


RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Décadas depois de emergir como um dos focos da representação cultural da pobreza urbana brasileira, problematizada (e romantizada) pelo cinema novo e acolhida nacionalmente por meio do samba e da canção popular, a favela vem sendo reciclada e assimilada nos últimos anos pela generalização de um outro conceito -o de periferia.
A periferia não é mais a antiga favela pendurada no morro do Rio, associada a malandros, sambistas e cabrochas. Agora ela se espalha pelo país, produz rap, funk e outras ondas, e sua nova cara vai se desenhando no cinema, na TV, na propaganda, na música e na literatura.
Natural que o fenômeno chame a atenção de estudiosos, como os que participam do mais recente número de uma das principais publicações de idéias e debates do país, a revista de antropologia "Sexta Feira".
Os ensaios da revista tratam desde as "paradas do sucesso periférico" -em que o antropólogo Hermano Vianna analisa essas produções musicais que parecem, aos olhos do centro, "populares demais para serem autenticamente populares"- às vinculações complexas entre pobreza e violência.
Periferia, diz Paula Miraglia, uma das editoras da "Sexta Feira", "é um tema que ganhou corpo nos últimos anos em múltiplas áreas; e é complexo o suficiente para que possamos refletir sobre ele na revista". "O que a gente queria responder e problematizar é a própria idéia de periferia. Se é um lugar, uma relação."
"O tema voltou", diz Ivana Bentes, professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que promete para o ano que vem a publicação em livro (ainda sem editora) de sua extensa pesquisa sobre "as periferias globais". Um dos objetivos de seu estudo, ela diz, é analisar de que modo se dá essa visibilidade maior.
Na televisão, por exemplo, Bentes identifica um comportamento quase "esquizofrênico", "bipolar".
Por um lado, "a TV está fazendo uma inclusão visual", afirma a pesquisadora. "A publicidade usa os garotos negros da periferia para vender telefone celular. A televisão correu atrás com programas como o "Central da Periferia" [apresentado, na TV Globo, por Regina Casé] ou o "Antônia'", minissérie que narra as desventuras de um grupo de hip hop formado por quatro amigas da Brasilândia, periferia de São Paulo.
Mas há um paradoxo, ela diz. "Ao mesmo tempo em que apresentam a periferia nessas produções de maneira às vezes até um pouco idealizada, romantizada -a favela legal-, eles criminalizam a pobreza o tempo inteiro no jornalismo."
"Esses mesmos sujeitos que aparecem no "Antônia" ou na "Central da Periferia", na hora do Jornal Nacional são mostrados como a causa da violência urbana. Faz-se um discurso de terror em torno desses grupos."

Laboratório de ponta
Para Bentes, essa polaridade se liga a outra: ao fato de que a produção cultural da periferia é hoje o "laboratório de ponta" do capitalismo, da criação de novidades para o consumo. A inovação cultural não vem da classe média ou dos ricos.
Ao mesmo tempo, os "criadores", os moradores das áreas pobres urbanas do Brasil, têm vidas quase descartáveis. "Esse cara que faz o hip hop ou o funk pode ser morto amanhã pela polícia, que chega atirando sem saber se o cara é bandido ou não", diz Bentes.
Não há favor na atenção à periferia, e, para além do reconhecimento de valor, há muitas vezes interesse -na criação de moda, de estilo- ou medo.
"De fato as favelas estão mais presentes em obras de arte contemporâneas, talvez por estarem se tornando a cada dia um problema maior, fora de controle", diz Fernando Meirelles, diretor de "Cidade de Deus".

Sem favor
"Não é por generosidade" que o centro fala da periferia, diz Ivana Bentes. "Existe uma urgência social aí. Esses sujeitos são temidos pela classe média. Há uma necessidade de mapear e de domesticar o que está acontecendo."
Isso que está acontecendo, afirma Hermano Vianna em seu texto para "Sexta Feira", é "uma inclusão social conquistada na marra, quando a periferia deixa de se comportar como periferia, ou deixa de conhecer o "seu lugar'".
"A gente sempre foi muito retratado de fora para dentro. Acho que hoje está tendo muito mais o retrato de dentro para fora. Daí vem a força maior", declara Guti Fraga, fundador do grupo Nós do Morro, do Vidigal, no Rio.
Vianna lembra, em entrevista à Folha, que, "de certa forma, a arte moderna sempre colocou a periferia um pouco no "centro das atenções'".
"Lembro -e é só um exemplo bem conhecido- da relação de Picasso com as esculturas iorubás; no Brasil, então, essa relação parece ainda mais intensa", ele diz.
"O que há de novidade é que talvez não seja mais necessário passar pelo centro para a cultura da periferia se transformar em cultura de massa. Além disso: nem os Racionais nem a banda Calypso precisam mais do aval do velho centro (com suas tradicionais instâncias -críticas- de consagração, sejam elas universitárias ou industriais) para se tornarem o centro de novos vastos mundos", diz Vianna.
Para o antropólogo, "o centro está se dando conta da mudança" que, paradoxalmente, "o coloca de lado, "fora do centro" (o centro reduzido a um mundinho sem importância)".
"Por isso uma certa curiosidade espantada, ou uma rejeição categórica, mas ainda educada" aos fenômenos e à cultura de periferia, diz.


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