São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2008

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Ilustrada 50 Anos

O artista diluído

Idéia de um gênio criado e único é posta em cheque por conta de mudanças nos modos de produção

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Após mais de 50 anos de sua emergência, a noção de autoria da produção audiovisual distanciou-se do molde de expressão de visão genial e única que funcionou, nos primórdios da "política dos autores", como estratégia da afirmação artística do cinema em meio à lógica industrial de Hollywood.
Cineastas, roteiristas, diretores de TV, autores de novela e criadores de séries conquistam cada vez mais um lugar ao sol sob o céu da autoria sem ter que enfrentar a falta de escrúpulos de produtores "desalmados".
Não se trata de enxergar no atual quadro histórico e no que ele esboça daqui para a frente um estágio em que os criadores alcançaram plena autonomia.
O que testemunhamos é a eleição do autor ao posto de importante fator de marketing para um produto. Um bom nome pode ajudar a vender se estiver no alto do cartaz.
No caso das séries de TV, J.J.Abrams, David Chase, Alan Ball, Tim Kring, entre outros, se tornaram nomes reconhecidos como criadores de "Lost", "Família Soprano", "A Sete Palmos" e "Heroes".
Na TV aberta brasileira o reconhecimento de um autor encontra-se habitualmente associado ao nome de quem escreve o texto. Gilberto Braga, cuja assinatura acompanha alguns dos mais importantes "clássicos" da teledramaturgia brasileira, relativiza a tendência em transformar uma produção coletiva como uma telenovela em trabalho de um homem só. "É uma obra de equipe, todos contribuem." Contudo, ressalta que "autor e diretor são líderes. A telenovela é do escritor e do diretor, mas o escritor geralmente tem mais visibilidade".
Luiz Fernando Carvalho, criador da microssérie "Capitu", assume a particularidade de seu trabalho como autor na TV. "Como no meu caso escrevo e dirijo meus projetos, ser autor é imprimir meu pensamento em todas as áreas e departamentos da produção."
No caso de uma obra como "Alice", série da rede a cabo americana HBO com a brasileira Gullane Filmes, é outra a margem de autonomia para a expressão de personalidades.
Como enfatiza o cineasta Karim Aïnouz, que assina, ao lado de Sérgio Machado, a direção de "Alice", "a gente sabia, é claro, que se tratava de um filme de produtor no formato TV, com partes dirigidas por nós dois e por outros profissionais, mas no qual conseguimos imprimir uma personalidade. Isso porque existia um formato que comportava uma flexibilidade. Havia uma estrutura padrão de série, mas com um espaço que nos permitiu exercer aquilo que a gente sabia fazer bem nos filmes que tínhamos feito".
Do lado de quem escreve roteiros, a reivindicação de autoria revela outros aspectos. Di Moreti, um dos fundadores e atual presidente da associação Autores de Cinema, que congrega roteiristas, argumenta que "a intenção do grupo, de fato, é defender o mínimo direito do roteirista, o direito sobre a obra que deu origem ao filme. Queremos apenas nossa parcela de culpa no resultado final".
Em defesa do próprio trabalho se posiciona com firmeza a roteirista Elena Soarez. "Sou totalmente contrária à invasão dos diretores nos créditos de roteiro, uma prática, infelizmente, comum no nosso cinema, herdada do tempo em que o diretor fazia tudo. Curiosamente, diretores não se imiscuem nos créditos de direção de arte, fotografia e figurino."
No lugar de disputa de território, o diretor Kiko Goifman, do recém premiado "FilmeFobia" no Festival de Brasília, propõe a autoria como uma prática compartilhada, expressão de uma subjetividade de grupo, em vez do autor que se encontra no cume de uma estrutura piramidal como o público leigo supõe que se organiza uma produção de cinema.
"A hipertrofia do autor provoca o efeito de a pessoa superar a obra. Com isso, a repetição ocupa o lugar da criação, o que para o artista é o maior risco."
Ponto de vista equivalente é dado por George Moura, que insiste em apagar a ilusão de que a TV mereça ser encarada como um paraíso autoral. Para Moura, roteirista da Globo e um dos criadores do programa "Por Toda Minha Vida", "existe, sim, a possibilidade de invento, mas em TV a autoria é algo absolutamente secundário. Como diriam os modernistas brasileiros: abaixo o gênio e viva a rapaziada!"


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