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Ilustrada 50 Anos
O artista diluído
Idéia de um gênio criado e único é posta em cheque por conta de mudanças nos modos de produção
CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
Após mais de 50 anos de sua
emergência, a noção de autoria
da produção audiovisual distanciou-se do molde de expressão de visão genial e única que
funcionou, nos primórdios da
"política dos autores", como estratégia da afirmação artística
do cinema em meio à lógica industrial de Hollywood.
Cineastas, roteiristas, diretores de TV, autores de novela e
criadores de séries conquistam
cada vez mais um lugar ao sol
sob o céu da autoria sem ter que
enfrentar a falta de escrúpulos
de produtores "desalmados".
Não se trata de enxergar no
atual quadro histórico e no que
ele esboça daqui para a frente
um estágio em que os criadores
alcançaram plena autonomia.
O que testemunhamos é a
eleição do autor ao posto de importante fator de marketing
para um produto. Um bom nome pode ajudar a vender se estiver no alto do cartaz.
No caso das séries de TV,
J.J.Abrams, David Chase, Alan
Ball, Tim Kring, entre outros,
se tornaram nomes reconhecidos como criadores de "Lost",
"Família Soprano", "A Sete Palmos" e "Heroes".
Na TV aberta brasileira o reconhecimento de um autor encontra-se habitualmente associado ao nome de quem escreve
o texto. Gilberto Braga, cuja assinatura acompanha alguns
dos mais importantes "clássicos" da teledramaturgia brasileira, relativiza a tendência em
transformar uma produção coletiva como uma telenovela em
trabalho de um homem só. "É
uma obra de equipe, todos contribuem." Contudo, ressalta
que "autor e diretor são líderes.
A telenovela é do escritor e do
diretor, mas o escritor geralmente tem mais visibilidade".
Luiz Fernando Carvalho,
criador da microssérie "Capitu", assume a particularidade
de seu trabalho como autor na
TV. "Como no meu caso escrevo e dirijo meus projetos, ser
autor é imprimir meu pensamento em todas as áreas e departamentos da produção."
No caso de uma obra como
"Alice", série da rede a cabo
americana HBO com a brasileira Gullane Filmes, é outra a
margem de autonomia para a
expressão de personalidades.
Como enfatiza o cineasta Karim Aïnouz, que assina, ao lado
de Sérgio Machado, a direção
de "Alice", "a gente sabia, é claro, que se tratava de um filme
de produtor no formato TV,
com partes dirigidas por nós
dois e por outros profissionais,
mas no qual conseguimos imprimir uma personalidade. Isso
porque existia um formato que
comportava uma flexibilidade.
Havia uma estrutura padrão de
série, mas com um espaço que
nos permitiu exercer aquilo
que a gente sabia fazer bem nos
filmes que tínhamos feito".
Do lado de quem escreve roteiros, a reivindicação de autoria revela outros aspectos. Di
Moreti, um dos fundadores e
atual presidente da associação
Autores de Cinema, que congrega roteiristas, argumenta
que "a intenção do grupo, de fato, é defender o mínimo direito
do roteirista, o direito sobre a
obra que deu origem ao filme.
Queremos apenas nossa parcela de culpa no resultado final".
Em defesa do próprio trabalho se posiciona com firmeza a
roteirista Elena Soarez. "Sou
totalmente contrária à invasão
dos diretores nos créditos de
roteiro, uma prática, infelizmente, comum no nosso cinema, herdada do tempo em que o
diretor fazia tudo. Curiosamente, diretores não se imiscuem nos créditos de direção
de arte, fotografia e figurino."
No lugar de disputa de território, o diretor Kiko Goifman,
do recém premiado "FilmeFobia" no Festival de Brasília,
propõe a autoria como uma
prática compartilhada, expressão de uma subjetividade de
grupo, em vez do autor que se
encontra no cume de uma estrutura piramidal como o público leigo supõe que se organiza uma produção de cinema.
"A hipertrofia do autor provoca o efeito de a pessoa superar a obra. Com isso, a repetição
ocupa o lugar da criação, o que
para o artista é o maior risco."
Ponto de vista equivalente é
dado por George Moura, que
insiste em apagar a ilusão de
que a TV mereça ser encarada
como um paraíso autoral. Para
Moura, roteirista da Globo e
um dos criadores do programa
"Por Toda Minha Vida", "existe, sim, a possibilidade de invento, mas em TV a autoria é algo absolutamente secundário.
Como diriam os modernistas
brasileiros: abaixo o gênio e viva a rapaziada!"
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