São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2008

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BIA ABRAMO

Capitu de olhos límpidos


Luiz Fernando Carvalho restaura o encanto dessa grande história de amor com a minissérie


"CAPITU" é uma beleza. Capitu também. Quando ela surge, ao som da canção neo-folk do Beirut, com um vestido folhudo, dançando, enche a pequena tela da televisão de luz, cor e encantamento. Como o próprio Bentinho de 15 anos, Luiz Fernando Carvalho está apaixonado por ela. A grande ousadia do diretor nesta versão de "Dom Casmurro" não é a trilha sonora, ou a mistura de linguagens, ou a cenografia pop, mas, sim, a de se colocar como mais um narrador, tão caprichoso e interessado como qualquer outro narrador de Machado de Assis. Ele cria uma espécie de Carvalho-Bentinho, que se transmuta em Carvalho-Bento Santiago, acelerando ainda mais a instabilidade da narrativa machadiana.
Como narrador, Carvalho não é Casmurro. É generoso, algo nostálgico e, sim, completamente capturado, quase como se quisesse restaurar, depois de tantas camadas interpretativas aderidas ao romance, uma mirada anterior a todas elas. Não pode, ele sabe -é inteligente e, mesmo se não o fosse, lá está a voz de Dom Casmurro, que não permite muitas ilusões-, mas tenta, restabelecendo o encanto dessa grande história de amor.
Nada de olhos oblíquos, mas diretos e cativos. A dissimulação vai por conta da perfídia que o agregado José Dias vê na "mocetona alta, forte, cheia". O agregado vê cálculo. Bentinho só enxerga os encontros e desencontros de dois desejos. Capitu olha para dentro de si mesma, para o centro de seu desejo.
Depois, a Capitu adulta entra envolta em véus e rendas e, aí sim, o olhar de Carvalho-Bento Santiago, algo já desencantado dessa Capitu não-interditada pela promessa do seminário, torna-se oblíquo, enxergando em tudo a dissimulação. Não se pense com isso que Carvalho quer resolver Capitu. Quer, muito machadianamente, propor outra dúvida, outra camada.
Claro que, para isso, ele toma liberdades, como a de precipitar a casmurrice de Bento Santiago para o burlesco, trocando o irônico pelo ridículo, de forma a desnudar o homem ciumento, caprichoso e trágico, que mata todos os seus objetos de afeição (nesse sentido, há, antes, um julgamento de Bentinho).
Luiz Fernando Carvalho, desta vez, chegou a uma obra admirável. De certa forma, a reverência ao texto que aparece em "Lavoura Arcaica" ou o delírio visual-narrativo de "A Pedra do Reino" encontram-se aqui em outro ponto de tensão, mais fluido. Continua "difícil", por mais que as referências pop queiram forçar um apelo jovem. Ainda bem. A beleza é mesmo difícil.


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