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DISCO LANÇAMENTO
Brahms por Gould por Bernstein é peça antológica
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha
Extrato dos diários de Schumann, dia 1º de outubro de 1853:
"Visita de Brahms (um gênio)". É
assim, discretamente, entre parênteses, mas com a certeza que só um
gênio pode ter de outro, que aparece a primeira referência ao compositor. Poucos dias mais tarde,
Schumann assinaria um artigo de
jornal proclamando a genialidade
do jovem Brahms, "destinado a
dar forma ideal à mais alta expressão do nosso tempo". Berlioz e
Liszt, entre outros, logo se uniram
ao coro de elogios; e desde então a
grandeza de Brahms (1833-97) jamais foi motivo de disputa.
A relação de fidelidade entre
Brahms e Schumann passa também pela transformação extraordinária das obras do precursor nas
composições do pupilo. Beethoven e Schumann, Haydn e Mozart,
assim como Chopin e até Wagner,
servem de matéria-prima para a
música de Brahms, capaz de reinventar a lógica dos outros num novo idioma e segundo novos propósitos. Nenhum compositor foi
mais erudito do que ele. Nenhum
erudito foi mais compositor.
A obra completa de Brahms chega ao "Opus 121". Mas isso só corresponde a cerca de um terço do
que ele deve ter composto. O resultado de seu instinto quase suicida
de autocrítica é uma obra ambiciosa e variada, sem uma peça sequer
que não seja um modelo de composição. Brahms costumava dizer
que teria sido uma maravilha viver
na época de Mozart, quando ainda
era fácil escrever música. Escrever
música na era de Brahms tornou-se necessariamente difícil para
compositores obrigados a dar conta do passado. Escrever música depois de Brahms tornou-se mais difícil ainda: justamente o desafio de
escrever depois de Brahms.
Entre as características principais da sua música estão, de um lado, o desenvolvimento, até as últimas consequências, da lógica temática do período romântico. Os
aforismos e temas líricos concentrados, que serviam à estética do
fragmento em Schumann ou Chopin, ascendem aqui, mais uma vez,
à grande arquitetura. De outro lado, Brahms é um compositor das
ambivalências, tanto musicais
quanto afetivas. Tudo se vela e se
transforma nessa música da passagem. Brahms é o Henry James da
música, tanto quanto James é o
Brahms da ficção.
Veja-se o início do "Concerto nº
1, para Piano e Orquestra". Boa
parte da tensão do início vem do
fato de que, muito embora não haja dúvida de que estamos em ré
menor, não há um acorde inequívoco até o décimo compasso. Com
seus mais de 50 minutos de duração, o concerto é uma grande homenagem aos concertos de Beethoven, na retórica mais elevada
da honra, que é a assimilação. Ambiguidades e assimilações são a
marca também de uma interpretação histórica, com o pianista Glenn
Gould e a New York Philharmonic
regida por Leonard Bernstein, lançada em disco depois de 38 anos.
Em 1960, Gould gravara uma versão, até hoje sem rival, dos "Intermezzi" de Brahms. Tudo ali se nutre de "uma atmosfera de improvisação", definida pelo próprio pianista na época como "a melhor
coisa que já fui capaz de fazer". Os
"Intermezzi" de Gould soam como
o pensamento em vias de se fazer e
se desfazer, no ritmo incontrolável
de correntes mais fundas. É uma
música de nuance, sem nenhum
maneirismo, o estilo tardio de
Brahms reanimado com as energias do que não tem idade, mas sofre com a idade.
Nada poderia ser mais distante
de sua interpretação do "Concerto
em Ré Menor". É um Brahms escultural, maciço, um monumento
de som. A orquestra fica obrigada
a assumir uma identidade igualmente gigantesca. Não chega a ser
um Brahms um outro compositor,
mais antigo e mais moderno - como tende a ser o caso com qualquer interpretação de Gould.
Nem todo mundo concordaria
com essa visão do "Concerto". O
regente Leonard Bernstein foi o
primeiro a discordar. Suas palavras de protesto, dirigidas ao público do Carnegie Hall antes da
apresentação, causaram irritação e
celeuma e entraram para os anais
anedóticos da musicologia (leia a
tradução do texto ao lado). Mas, à
distância de quase 40 anos, fica
mais fácil hoje concordar com o
próprio Gould, que se disse encantado com Bernstein.
Brahms por Gould não é para todos os gostos. A qualidade da gravação também não ajuda. Mas
Brahms por Gould por Bernstein é
uma peça antológica. Se Brahms é
o compositor, por excelência, da
reinterpretação; e se Gould é o pianista, por excelência, da recomposição, ninguém melhor do que
Bernstein para resumir a grandeza
desses dois heróis do pensamento.
Todo charme e todo o orgulho do
regente, ao se distanciar da interpretação do solista, serve paradoxalmente para reafirmar a importância de sua leitura.
Só a gravação ao vivo do "Concerto", neste disco, talvez não se
justificasse. Prefaciada por Bernstein e comentada por Gould, ela se
transforma numa imagem, ou emblema mesmo, das preocupações
centrais da época. Reinventando a
música do passado, com os meios
do próprio passado, Gould faz jus
ao espírito de respeito e desrespeito que está no coração do próprio
Brahms. Reinterpretando Gould e
deslocando a música ainda uma
vez, Bernstein faz jus a Gould, com
a moeda do espírito.
Em retrospecto, é uma lição e
tanto encontrar nesses dois intérpretes divididos toda a ambição e
toda angústia da música atual. Pode ser uma ironia descobrir em
Brahms, mais uma vez, um campo
de ambivalência. Mas não é outra
coisa o que se escuta nas entrelinhas dessa gravação: "Uma forma
ideal da mais alta expressão do
nosso tempo".
²
Disco: Concerto nº 1, para Piano e Orquestra
Compositor: Johannes Brahms
Pianista: Glenn Gould
Regente: Leonard Bernstein
Lançamento: Sony
Quanto: R$ 18, em média
nestro@uol.com.br
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