São Paulo, segunda, 14 de dezembro de 1998

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DISCO LANÇAMENTO

Brahms por Gould por Bernstein é peça antológica

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

Extrato dos diários de Schumann, dia 1º de outubro de 1853: "Visita de Brahms (um gênio)". É assim, discretamente, entre parênteses, mas com a certeza que só um gênio pode ter de outro, que aparece a primeira referência ao compositor. Poucos dias mais tarde, Schumann assinaria um artigo de jornal proclamando a genialidade do jovem Brahms, "destinado a dar forma ideal à mais alta expressão do nosso tempo". Berlioz e Liszt, entre outros, logo se uniram ao coro de elogios; e desde então a grandeza de Brahms (1833-97) jamais foi motivo de disputa.
A relação de fidelidade entre Brahms e Schumann passa também pela transformação extraordinária das obras do precursor nas composições do pupilo. Beethoven e Schumann, Haydn e Mozart, assim como Chopin e até Wagner, servem de matéria-prima para a música de Brahms, capaz de reinventar a lógica dos outros num novo idioma e segundo novos propósitos. Nenhum compositor foi mais erudito do que ele. Nenhum erudito foi mais compositor.
A obra completa de Brahms chega ao "Opus 121". Mas isso só corresponde a cerca de um terço do que ele deve ter composto. O resultado de seu instinto quase suicida de autocrítica é uma obra ambiciosa e variada, sem uma peça sequer que não seja um modelo de composição. Brahms costumava dizer que teria sido uma maravilha viver na época de Mozart, quando ainda era fácil escrever música. Escrever música na era de Brahms tornou-se necessariamente difícil para compositores obrigados a dar conta do passado. Escrever música depois de Brahms tornou-se mais difícil ainda: justamente o desafio de escrever depois de Brahms.
Entre as características principais da sua música estão, de um lado, o desenvolvimento, até as últimas consequências, da lógica temática do período romântico. Os aforismos e temas líricos concentrados, que serviam à estética do fragmento em Schumann ou Chopin, ascendem aqui, mais uma vez, à grande arquitetura. De outro lado, Brahms é um compositor das ambivalências, tanto musicais quanto afetivas. Tudo se vela e se transforma nessa música da passagem. Brahms é o Henry James da música, tanto quanto James é o Brahms da ficção.
Veja-se o início do "Concerto nº 1, para Piano e Orquestra". Boa parte da tensão do início vem do fato de que, muito embora não haja dúvida de que estamos em ré menor, não há um acorde inequívoco até o décimo compasso. Com seus mais de 50 minutos de duração, o concerto é uma grande homenagem aos concertos de Beethoven, na retórica mais elevada da honra, que é a assimilação. Ambiguidades e assimilações são a marca também de uma interpretação histórica, com o pianista Glenn Gould e a New York Philharmonic regida por Leonard Bernstein, lançada em disco depois de 38 anos.
Em 1960, Gould gravara uma versão, até hoje sem rival, dos "Intermezzi" de Brahms. Tudo ali se nutre de "uma atmosfera de improvisação", definida pelo próprio pianista na época como "a melhor coisa que já fui capaz de fazer". Os "Intermezzi" de Gould soam como o pensamento em vias de se fazer e se desfazer, no ritmo incontrolável de correntes mais fundas. É uma música de nuance, sem nenhum maneirismo, o estilo tardio de Brahms reanimado com as energias do que não tem idade, mas sofre com a idade.
Nada poderia ser mais distante de sua interpretação do "Concerto em Ré Menor". É um Brahms escultural, maciço, um monumento de som. A orquestra fica obrigada a assumir uma identidade igualmente gigantesca. Não chega a ser um Brahms um outro compositor, mais antigo e mais moderno - como tende a ser o caso com qualquer interpretação de Gould.
Nem todo mundo concordaria com essa visão do "Concerto". O regente Leonard Bernstein foi o primeiro a discordar. Suas palavras de protesto, dirigidas ao público do Carnegie Hall antes da apresentação, causaram irritação e celeuma e entraram para os anais anedóticos da musicologia (leia a tradução do texto ao lado). Mas, à distância de quase 40 anos, fica mais fácil hoje concordar com o próprio Gould, que se disse encantado com Bernstein.
Brahms por Gould não é para todos os gostos. A qualidade da gravação também não ajuda. Mas Brahms por Gould por Bernstein é uma peça antológica. Se Brahms é o compositor, por excelência, da reinterpretação; e se Gould é o pianista, por excelência, da recomposição, ninguém melhor do que Bernstein para resumir a grandeza desses dois heróis do pensamento. Todo charme e todo o orgulho do regente, ao se distanciar da interpretação do solista, serve paradoxalmente para reafirmar a importância de sua leitura.
Só a gravação ao vivo do "Concerto", neste disco, talvez não se justificasse. Prefaciada por Bernstein e comentada por Gould, ela se transforma numa imagem, ou emblema mesmo, das preocupações centrais da época. Reinventando a música do passado, com os meios do próprio passado, Gould faz jus ao espírito de respeito e desrespeito que está no coração do próprio Brahms. Reinterpretando Gould e deslocando a música ainda uma vez, Bernstein faz jus a Gould, com a moeda do espírito.
Em retrospecto, é uma lição e tanto encontrar nesses dois intérpretes divididos toda a ambição e toda angústia da música atual. Pode ser uma ironia descobrir em Brahms, mais uma vez, um campo de ambivalência. Mas não é outra coisa o que se escuta nas entrelinhas dessa gravação: "Uma forma ideal da mais alta expressão do nosso tempo".
²
Disco: Concerto nº 1, para Piano e Orquestra
Compositor: Johannes Brahms
Pianista: Glenn Gould
Regente: Leonard Bernstein
Lançamento: Sony
Quanto: R$ 18, em média

nestro@uol.com.br


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