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FERNANDO GABEIRA
A terra se move, as cabeças nem tanto
Sou aprendiz de desastre. Presente nos grandes que aconteceram no Brasil quando houve
tempo e recurso, viajei para estudar o caso do navio Prestige, na
Galícia. O objetivo é o de sempre:
ganhar experiência e reflexo para
administrar a crise e reduzir danos.
Quando visitava Florianópolis,
chegou a notícia da chegada do
furacão Catarina. Naquele momento, havia uma discussão sobre
o fenômeno: ciclone ou furacão?
Sem subestimar o debate científico, posso afirmar que, a partir de
certa velocidade do vento, não importa que diabo, mas quais são as
providências urgentes a tomar.
Não tínhamos experiência com
esse tipo de desastre. A saída foi
entrar na rede e colher a experiência da Flórida e do Caribe. Produzimos em poucas horas uma cartilha de medidas emergenciais. O
governo as distribuiu com eficácia. Mas as medidas no Caribe e
EUA são tomadas com uma semana de antecedência. Tínhamos
pouco mais do que dez horas.
Duas coisas ficaram claras: O litoral sul precisa de mais estações
meteorológicas e não se deu a mínima importância para o tema assim que ele saiu do noticiário.
O tsunami que arrasou uma
parte do litoral asiático tornou a
terra mais redonda, segundo cientistas. Mas teria, realmente, aberto as cabeças? Um dos grandes
equívocos, neste momento, é alinhar os grandes desastres naturais, como o terremoto de Lisboa,
como se sucedessem num planeta
inalterado.
Discussões filosóficas emergiram
do terremoto de Lisboa. Mas,
quando o tsunami varreu a costa,
já existia uma grande discussão
sobre as catástrofes. Pela primeira
vez na história, a humanidade
reuniu não só os meios para destruir pelas armas de destruição
maciça como também para destruir o planeta, através de um
crescimento desordenado. Sociedade de riscos, na qual a função
dos governantes seria administrá-los seriamente, deduz-se das teorias do suíço Ulrich Beck. Já o
francês Jean-Pierre Dupuy contesta a expressão "sociedade de riscos" ou mesmo as principais referências do famoso princípio de
precaução. Nessas teses, para ele,
nunca se estabelece o papel da redução de todas as dimensões da
vida à problemática da produção
e consumo na gênese dos perigos
modernos.
Dupuy escreveu um livro com
um título sugestivo: "Por um Catastrofismo Esclarecido". Num
ponto essencial, ele concorda com
os ecologistas: o movimento de
salvação passa pela prioridade da
política sobre o cálculo econômico. Para mim, estamos perdendo
esse embate. Se depender dele, o
mocinho morre no final.
Algumas evidências o tsunami
reforçou. Por exemplo: a segurança ambiental transcende os governos nacionais. Os europeus decidiram construir um esquema de
alarme no Índico. Isso não é apenas um gesto de solidariedade
com os pobres. Milhares de europeus estavam nas praias quando o
maremoto aconteceu.
No desastre do Prestige, já observava esse conflito. É justo a Galícia, que não produz petróleo, gastar milhões de euros com um sistema de segurança em suas costas?
Os navios que passam por lá são
contratados por "brookers", navegam com bandeira de conveniência e alimentam automóveis
alheios.
Do 11 de Setembro para cá, com
catástrofes naturais e políticas se
sucedendo, será necessário concordar com uma frase atribuída a
Henry Bergson sobre a guerra:
quem poderia acreditar que eventualidades tão formidáveis podem
fazer sua entrada no real, com
tanto desembaraço?
O princípio de precaução não
chega à raiz do problema. Mesmo
ele, no entanto, tem difícil passagem pelo Brasil. Críticas às novas
tecnologias são rapidamente interpretadas com o espírito da Revolução Industrial. Seus autores
são julgados como ludistas, os trabalhadores que destruíam máquinas com medo do progresso.
Talvez exista também uma certa resistência cultural à precaução, como se fosse o gesto de alguém que circula de guarda-chuva e teme as correntes de ar. Há alguns anos, participei de um debate em que o jornalista Newton
Carlos falava das ameaças de
uma possível guerra nuclear. As
pessoas ao meu lado riam daquilo, como se se tratasse de outro
planeta.
Newton Carlos sempre foi levemente pessimista. Mas aquele era
o tema mundial de maior importância na época. Como é hoje o
aquecimento global. Há uma
grande dificuldade em prevenir
catástrofes. É preciso acreditar na
sua possibilidade. Mas, se elas
não acontecem, nossos esforços de
prevenção aparecem retrospectivamente como inúteis.
O tsunami não foi um acidente
ecológico, na sua essência, mas a
destruição de recifes e corais contribuiu para o curso da onda.
Qualquer temporal hoje no Haiti,
onde todas as árvores foram destruídas, é sempre uma tragédia.
As pessoas que ainda vivem
com a cabeça na Revolução Industrial poderiam compreender,
pelo menos, que não existe mais a
natureza em estado puro. Ela foi
modificada pela ação humana.
Agora estamos descobrindo as
conseqüências de nossa intervenção com o retorno do trágico no
mundo moderno.
Descrever o 11 de Setembro e o
tsunami como a irrupção do impossível dentro do possível é apenas um lado do problema. O outro é reconhecer que aconteceram
porque eram possíveis. Sobreviver
com essa contradição implica gigantesca mudança mental, da altura da explosão do World Trade
Center ou da onda que surgiu no
mar.
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