São Paulo, sábado, 15 de janeiro de 2005

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FERNANDO GABEIRA

A terra se move, as cabeças nem tanto

Sou aprendiz de desastre. Presente nos grandes que aconteceram no Brasil quando houve tempo e recurso, viajei para estudar o caso do navio Prestige, na Galícia. O objetivo é o de sempre: ganhar experiência e reflexo para administrar a crise e reduzir danos.
Quando visitava Florianópolis, chegou a notícia da chegada do furacão Catarina. Naquele momento, havia uma discussão sobre o fenômeno: ciclone ou furacão? Sem subestimar o debate científico, posso afirmar que, a partir de certa velocidade do vento, não importa que diabo, mas quais são as providências urgentes a tomar.
Não tínhamos experiência com esse tipo de desastre. A saída foi entrar na rede e colher a experiência da Flórida e do Caribe. Produzimos em poucas horas uma cartilha de medidas emergenciais. O governo as distribuiu com eficácia. Mas as medidas no Caribe e EUA são tomadas com uma semana de antecedência. Tínhamos pouco mais do que dez horas.
Duas coisas ficaram claras: O litoral sul precisa de mais estações meteorológicas e não se deu a mínima importância para o tema assim que ele saiu do noticiário.
O tsunami que arrasou uma parte do litoral asiático tornou a terra mais redonda, segundo cientistas. Mas teria, realmente, aberto as cabeças? Um dos grandes equívocos, neste momento, é alinhar os grandes desastres naturais, como o terremoto de Lisboa, como se sucedessem num planeta inalterado.
Discussões filosóficas emergiram do terremoto de Lisboa. Mas, quando o tsunami varreu a costa, já existia uma grande discussão sobre as catástrofes. Pela primeira vez na história, a humanidade reuniu não só os meios para destruir pelas armas de destruição maciça como também para destruir o planeta, através de um crescimento desordenado. Sociedade de riscos, na qual a função dos governantes seria administrá-los seriamente, deduz-se das teorias do suíço Ulrich Beck. Já o francês Jean-Pierre Dupuy contesta a expressão "sociedade de riscos" ou mesmo as principais referências do famoso princípio de precaução. Nessas teses, para ele, nunca se estabelece o papel da redução de todas as dimensões da vida à problemática da produção e consumo na gênese dos perigos modernos.
Dupuy escreveu um livro com um título sugestivo: "Por um Catastrofismo Esclarecido". Num ponto essencial, ele concorda com os ecologistas: o movimento de salvação passa pela prioridade da política sobre o cálculo econômico. Para mim, estamos perdendo esse embate. Se depender dele, o mocinho morre no final.
Algumas evidências o tsunami reforçou. Por exemplo: a segurança ambiental transcende os governos nacionais. Os europeus decidiram construir um esquema de alarme no Índico. Isso não é apenas um gesto de solidariedade com os pobres. Milhares de europeus estavam nas praias quando o maremoto aconteceu.
No desastre do Prestige, já observava esse conflito. É justo a Galícia, que não produz petróleo, gastar milhões de euros com um sistema de segurança em suas costas? Os navios que passam por lá são contratados por "brookers", navegam com bandeira de conveniência e alimentam automóveis alheios.
Do 11 de Setembro para cá, com catástrofes naturais e políticas se sucedendo, será necessário concordar com uma frase atribuída a Henry Bergson sobre a guerra: quem poderia acreditar que eventualidades tão formidáveis podem fazer sua entrada no real, com tanto desembaraço?
O princípio de precaução não chega à raiz do problema. Mesmo ele, no entanto, tem difícil passagem pelo Brasil. Críticas às novas tecnologias são rapidamente interpretadas com o espírito da Revolução Industrial. Seus autores são julgados como ludistas, os trabalhadores que destruíam máquinas com medo do progresso.
Talvez exista também uma certa resistência cultural à precaução, como se fosse o gesto de alguém que circula de guarda-chuva e teme as correntes de ar. Há alguns anos, participei de um debate em que o jornalista Newton Carlos falava das ameaças de uma possível guerra nuclear. As pessoas ao meu lado riam daquilo, como se se tratasse de outro planeta.
Newton Carlos sempre foi levemente pessimista. Mas aquele era o tema mundial de maior importância na época. Como é hoje o aquecimento global. Há uma grande dificuldade em prevenir catástrofes. É preciso acreditar na sua possibilidade. Mas, se elas não acontecem, nossos esforços de prevenção aparecem retrospectivamente como inúteis.
O tsunami não foi um acidente ecológico, na sua essência, mas a destruição de recifes e corais contribuiu para o curso da onda. Qualquer temporal hoje no Haiti, onde todas as árvores foram destruídas, é sempre uma tragédia.
As pessoas que ainda vivem com a cabeça na Revolução Industrial poderiam compreender, pelo menos, que não existe mais a natureza em estado puro. Ela foi modificada pela ação humana. Agora estamos descobrindo as conseqüências de nossa intervenção com o retorno do trágico no mundo moderno.
Descrever o 11 de Setembro e o tsunami como a irrupção do impossível dentro do possível é apenas um lado do problema. O outro é reconhecer que aconteceram porque eram possíveis. Sobreviver com essa contradição implica gigantesca mudança mental, da altura da explosão do World Trade Center ou da onda que surgiu no mar.


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