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RODAPÉ
Arquivos do desastre
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
No último parágrafo de "Os
Anéis de Saturno", W.G. Sebald define seu livro como uma
meditação sobre "nossa história
que consiste quase só em calamidades". A escolha desse romance
para dar início à minha colaboração neste "Rodapé" tem um sentido claro: refletir sobre a literatura
como representação das tensões
que percorrem nossa realidade de
catástrofes coletivas ou de aniquilamento individual -e que justificam o próprio ato de escrever livros e de escrever sobre livros.
Poucas obras expressam tão
bem os desastres contemporâneos quanto a desse escritor alemão que nasceu em Wertach-im-Allgau, em 1944, e morreu num
acidente de automóvel em 2001,
depois de ter emigrado para a Inglaterra, onde foi professor de literatura na Universidade de East
Anglia.
A condição de exilado percorre
a obra de Sebald. "Os Emigrantes", seu primeiro livro publicado
no Brasil, descreve encontros com
personagens cujas trajetórias o
narrador tenta recuperar dos escombros da violência política do
século 20, judeus cuja busca de
uma identidade perdida se mostra cada vez mais fugidia e mutilada, na medida em que Sebald tenta resgatá-las por meio de uma
técnica narrativa singular, que reproduz documentos e uma memória oral assimilada a um texto
que é pontuado por fotografias e
imagens de álbuns de família que,
paradoxalmente, tornam cada
vez mais imaterial o passado que
deveriam presentificar.
Em "Os Anéis de Saturno", Sebald adota o mesmo dispositivo
estilístico. A partir do registro autobiográfico de uma viagem pelo
condado de Suffolk, ele relata
uma série de encontros com personagens que deflagram devaneios que parecem nos distanciar
da errância do narrador e que, ao
final, nos reconduzem à atmosfera a um só tempo pacata e asfixiante de sua prosa cadenciada e
sem sobressaltos.
Assim como em "Os Emigrantes", a sombra do genocídio nazista também se faz presente nessa "peregrinação inglesa" (de
acordo com o subtítulo original,
que a edição brasileira omite).
Mas, em "Os Anéis de Saturno", o
arco temporal é mais amplo: Sebald reconstitui o périplo do escritor Joseph Conrad desde o
Congo Belga até Bruxelas, "com
seus edifícios cada vez mais bombásticos, como um monumento
fúnebre que se ergue sobre uma
hecatombe de corpos negros"; vai
até a China da época da Guerra do
Ópio e mostra os efeitos das macabras articulações políticas sobre
uma imperatriz que, às portas da
morte e após uma série de atrocidades, "via que a história consistia
unicamente na infelicidade e nos
males que nos atingem, onda a
onda como na beira do mar".
Tudo isso evoca o passado colonial europeu e seu rastro de sangue e desolação. Mas, ao mesmo
tempo, os dez capítulos de "Os
Anéis de Saturno" são articulados
por um olhar que é atravessado
pela experiência essencialmente
contemporânea que transformou
a história numa sucessão de ruínas (segundo o mote de Walter
Benjamin) e que faz com que Sebald seja considerado um dos
grandes escritores que procuram
responder ao trauma coletivo e
individual do Holocausto.
Da mesma forma que Paul Celan ou Primo Levi, Sebald expressa em sua escrita serena a impossibilidade de representar um mal
absoluto, que lança uma camada
de cinzas sobre tudo o que é vivo,
diante do qual as palavras se mostram impotentes.
Tal impossibilidade não impede
que Sebald nos conduza ao coração das trevas. Mas ele o faz de
modo irônico, declaradamente
inspirado em Borges, cobrindo
cada frase de "Os Anéis de Saturno", com a tinta da melancolia,
essa afecção da alma que consiste
em flagrar a transitoriedade das
coisas e dos seres e vislumbrar,
em cada vereda, um destino de
morte.
A disposição com que Sebald
testemunha a realidade está presente desde o título do livro (Saturno é o deus da acedia, dos espíritos contemplativos) até sua obsessão borgiana por taxonomias,
dissecações, arquivos ou coleções
enfim, técnicas que consistem em
reduzir o existente a um acúmulo
de objetos inertes.
Numa das passagens mais impressionantes do livro, após o encontro com uma personagem cujo escritório soterrado de papéis
evoca "o anjo imóvel da melancolia de Dürer entre os instrumentos da destruição", Sebald se lança
numa série de especulações sobre
o quadro "A Lição de Anatomia
do Dr. Tulp", de Rembrandt, uma
das imagens que pontuam essas
narrativas concêntricas como os
anéis de Saturno.
Na monotonia planejada do romance, detalhes sobre a pesca do
arenque e da criação do bicho-da-seda (que evoca a morte em escala
industrial dos campos de concentração) estão no mesmo plano
que a história fraturada de famílias que habitam propriedades rurais decadentes ou do imaginário
fantástico do médico Thomas
Bronwe (cujas metáforas e analogias "parecem procissões ou cortejos fúnebres"). Tudo conduz ao
nada e sobrevive apenas nessas
páginas em que Sebald procura
captar com delicadeza os vestígios
de uma vida que agoniza.
Os Anéis de Saturno
The Rings of Saturn
Autor: W.G. Sebald
Tradudora: Lya Luft
Editora: Record
Quanto: R$ 35 (304 págs.)
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