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São Paulo, sábado, 15 de fevereiro de 2003

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RODAPÉ

Arquivos do desastre

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

No último parágrafo de "Os Anéis de Saturno", W.G. Sebald define seu livro como uma meditação sobre "nossa história que consiste quase só em calamidades". A escolha desse romance para dar início à minha colaboração neste "Rodapé" tem um sentido claro: refletir sobre a literatura como representação das tensões que percorrem nossa realidade de catástrofes coletivas ou de aniquilamento individual -e que justificam o próprio ato de escrever livros e de escrever sobre livros.
Poucas obras expressam tão bem os desastres contemporâneos quanto a desse escritor alemão que nasceu em Wertach-im-Allgau, em 1944, e morreu num acidente de automóvel em 2001, depois de ter emigrado para a Inglaterra, onde foi professor de literatura na Universidade de East Anglia.
A condição de exilado percorre a obra de Sebald. "Os Emigrantes", seu primeiro livro publicado no Brasil, descreve encontros com personagens cujas trajetórias o narrador tenta recuperar dos escombros da violência política do século 20, judeus cuja busca de uma identidade perdida se mostra cada vez mais fugidia e mutilada, na medida em que Sebald tenta resgatá-las por meio de uma técnica narrativa singular, que reproduz documentos e uma memória oral assimilada a um texto que é pontuado por fotografias e imagens de álbuns de família que, paradoxalmente, tornam cada vez mais imaterial o passado que deveriam presentificar.
Em "Os Anéis de Saturno", Sebald adota o mesmo dispositivo estilístico. A partir do registro autobiográfico de uma viagem pelo condado de Suffolk, ele relata uma série de encontros com personagens que deflagram devaneios que parecem nos distanciar da errância do narrador e que, ao final, nos reconduzem à atmosfera a um só tempo pacata e asfixiante de sua prosa cadenciada e sem sobressaltos.
Assim como em "Os Emigrantes", a sombra do genocídio nazista também se faz presente nessa "peregrinação inglesa" (de acordo com o subtítulo original, que a edição brasileira omite). Mas, em "Os Anéis de Saturno", o arco temporal é mais amplo: Sebald reconstitui o périplo do escritor Joseph Conrad desde o Congo Belga até Bruxelas, "com seus edifícios cada vez mais bombásticos, como um monumento fúnebre que se ergue sobre uma hecatombe de corpos negros"; vai até a China da época da Guerra do Ópio e mostra os efeitos das macabras articulações políticas sobre uma imperatriz que, às portas da morte e após uma série de atrocidades, "via que a história consistia unicamente na infelicidade e nos males que nos atingem, onda a onda como na beira do mar".
Tudo isso evoca o passado colonial europeu e seu rastro de sangue e desolação. Mas, ao mesmo tempo, os dez capítulos de "Os Anéis de Saturno" são articulados por um olhar que é atravessado pela experiência essencialmente contemporânea que transformou a história numa sucessão de ruínas (segundo o mote de Walter Benjamin) e que faz com que Sebald seja considerado um dos grandes escritores que procuram responder ao trauma coletivo e individual do Holocausto.
Da mesma forma que Paul Celan ou Primo Levi, Sebald expressa em sua escrita serena a impossibilidade de representar um mal absoluto, que lança uma camada de cinzas sobre tudo o que é vivo, diante do qual as palavras se mostram impotentes.
Tal impossibilidade não impede que Sebald nos conduza ao coração das trevas. Mas ele o faz de modo irônico, declaradamente inspirado em Borges, cobrindo cada frase de "Os Anéis de Saturno", com a tinta da melancolia, essa afecção da alma que consiste em flagrar a transitoriedade das coisas e dos seres e vislumbrar, em cada vereda, um destino de morte.
A disposição com que Sebald testemunha a realidade está presente desde o título do livro (Saturno é o deus da acedia, dos espíritos contemplativos) até sua obsessão borgiana por taxonomias, dissecações, arquivos ou coleções enfim, técnicas que consistem em reduzir o existente a um acúmulo de objetos inertes.
Numa das passagens mais impressionantes do livro, após o encontro com uma personagem cujo escritório soterrado de papéis evoca "o anjo imóvel da melancolia de Dürer entre os instrumentos da destruição", Sebald se lança numa série de especulações sobre o quadro "A Lição de Anatomia do Dr. Tulp", de Rembrandt, uma das imagens que pontuam essas narrativas concêntricas como os anéis de Saturno.
Na monotonia planejada do romance, detalhes sobre a pesca do arenque e da criação do bicho-da-seda (que evoca a morte em escala industrial dos campos de concentração) estão no mesmo plano que a história fraturada de famílias que habitam propriedades rurais decadentes ou do imaginário fantástico do médico Thomas Bronwe (cujas metáforas e analogias "parecem procissões ou cortejos fúnebres"). Tudo conduz ao nada e sobrevive apenas nessas páginas em que Sebald procura captar com delicadeza os vestígios de uma vida que agoniza.


Os Anéis de Saturno
The Rings of Saturn
     Autor: W.G. Sebald Tradudora: Lya Luft Editora: Record Quanto: R$ 35 (304 págs.)



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