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Depois de quase 30 anos colecionando contos e novelas, o médico cearense Ronaldo Correia de Brito liberta sua escrita de feitio seco em "Faca"
Faca amolada
CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL
A ampulheta da literatura é caprichosa. Para alguns, deixa a
areia correr fina e sedimentar-se
em dunas de livros publicados. A
outros impõe o escorrer moroso,
seja pelo autor que ajunta lentamente suas letras, seja pelo gargalo estreito das editoras, que não
consentem que elas passem.
A Ronaldo Correia de Brito, a
ampulheta da literatura deu a sentença de 30 anos.
Nascido no sertão dos Inhamuns, na cidade cearense de Saboeiro, ele começou com a ficção
no meridiano de sua maioridade.
Nas últimas três décadas, criou e
descriou, afiou para depois cegar,
colecionou e se desfez de um amplo universo de contos e novelas.
Agora, por fim, as particulas elementares de sua prosa chegaram
ao chão de vidro.
Aos 52 anos, Correia de Brito faz
sua "estréia" no próximo dia 24,
quando autografa em São Paulo
exemplares de seu livro "Faca", da
editora Cosac & Naify.
Afiada, a prosa do escritor cearense saiu da bainha graças a um
dos principais críticos brasileiros
em atividade, Davi Arrigucci Jr.
A novela começou há mais de
20 anos. O acaso levou o crítico a
assistir uma produção em Super 8
chamada "Lua Cambará". O crítico lembra do filme como "tosco",
mas, seduzido por "sua história
romanesca e poética", escreveu
um ensaio sobre ele.
Duas décadas se passaram, até
que um envelope magro entrou
com discrição na caixa de correio
de Arrigucci. Dentro, um singelo
livrinho de contos e meia página
de carta. Correia de Brito, autor
de "Lua Cambará", agradecia.
Esse ping-pong em câmara lenta ganhou então velocidade. Arrigucci soprou a Augusto Massi,
editor da Cosac, a qualidade do
feitio seco da prosa do cearense.
Correia de Brito abriu suas gavetas, Massi, Arrigucci e o também editor Rodrigo Lacerda levaram à forja, e assim nascia "Faca".
Não é um apenas o fio-da-navalha que corre pelos dez contos e
pela novela "Lua Cambará" que
compõem o volume.
Manuel Bandeira escreveu em
um poema "Vão demolir esta casa. Mas meu quarto vai ficar, não
como forma imperfeita neste
mundo de aparências: vai ficar na
eternidade, com seus livros, com
seus quadros, intacto, suspenso
no ar". Correia de Brito trabalha
nesse registro, o de um ambiente
demolido, mas que continua suspenso no ar. Mas os escombros
que restaura não têm nada de
quadros ou livros.
Suas "memórias inventadas",
como ele chama as narrativas,
imaginam as ruínas de um Nordeste que não existe mais. Mais do
que nordestina, é uma narrativa
do sertão.
Não é um sertão como o de
Euclydes da Cunha, não é como o
de Guimarães Rosa, nem mesmo
como o de Graciliano Ramos,
com quem guarda o parentesco
de uma escrita com poucos ornamentos, seca.
Como aponta Arrigucci no
bem-talhado posfácio de "Faca",
"o drama concentrado ganha força simbólica geral, de modo que
sertão tende a virar mundo, como
palco de contradições e conflitos
humanos em sua dimensão mais
ampla". Conflitos de fato não faltam nessas histórias, quase sempre pontuadas pela morte -como os pontos finais de histórias
de longo prazo.
"Meus personagens são trágicos, talhados para a tragédia", diz
Correia de Brito por telefone à Folha, de Recife, onde vive e atua como médico, clínico-geral.
"A medicina possibilita um
olhar sobre o homem, o sofrimento e a dor. Nesse sentido me
marca. Minha literatura tem um
olhar muito grande sobre a dor, a
miséria, o trágico e o patético humano", opina o escritor, que enumera uma longa lista de escritores-médicos: Guimarães Rosa,
Pedro Nava, Jorge de Lima... até
seu predileto, Tchecov.
Assim como o doutor e escritor
russo, Correia de Brito também é
ligado em fortes laços com o teatro. Mais do que pela literatura, é
por sua produção dramática -e
também por letras de canções-
que o trabalho do escritor circula
com alguma amplitude no Nordeste do país.
Foi na região que ele também fizera sua única aventura editorial,
o livreto "Os Dias e as Noites"
(aquele do envelope de Arrigucci), que a pernambucana Bagaço
imprimiu.
Mas talvez seja o próprio "Lua
Cambará", que serviu de base ao
filme citado em Super 8 e a outra
produção, mais recente, de Rosemberg Cariry, o trabalho mais
conhecido de Correia de Brito.
História que começou a ser escrita há 30 anos, já deu em peça de
teatro, balé e algumas versões
narrativas. A "versão final" da
história, garante o autor, é a que
encerra o livro "Faca".
E aí talvez fique mais exposta
outra característica essencial do
trabalho de Correia de Brito,
aquilo que Arrigucci chama de
"mistura peculiar de materiais variados, tradicionais e modernos".
"Contam os antigos do mundo
mítico no qual eu nasci que quando a rede com o corpo de Lua
Cambará foi roubada pelos dois
demônios enterraram em seu lugar um tronco de mulungu", diz
Correia de Brito.
Leitor assíduo, ele passa a história tradicional no liquidificador
das mitologias universais (na grega, por exemplo, também encontrou o enterro de troncos no lugar
de corpos, "o mito do corpo seco") e serve o conto com um sentimento moderno de angústia.
A agonia apresentada por Correia de Brito talvez não possa ser
melhor descrita do que por palavras primas do substantivo solidão. São personagens sós, largados nas ruínas, incomunicáveis.
Depois de 30 anos presos, eles estão livres da ampulheta.
FACA. Autor: Ronaldo Correia de Brito (ilustrações de Tita do Rêgo Silva).
Posfácio: Davi Arrigucci Jr. Editora: Cosac
& Naify (tel. 0/xx/11/3218-1444).
Quanto: R$ 27 (182 págs.) . Lançamento:
Bar Balcão (r. Melo Alves, 150, São Paulo,
tel. 0/xx/11/3063-6091). Quando: dia
24/2 (o livro estará sendo vendido a
partir da próxima sexta)
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