São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2004

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MÔNICA BERGAMO

Eu, tu, eles

Ana Ottoni/Folha Imagem
Antonio Fagundes (esq.) e Cacá Diegues riram na palestra de Ariano Suassuna com os "causos" contados pello escritor, dia 12, em seminário na PUC-SP


Num cenário simbólico, o Tuca, teatro que foi palco de manifestações contra o regime militar, 70 artistas, intelectuais, publicitários, cineastas, escritores e editores se reuniram na quinta-feira para discutir a "valorização da produção cultural brasileira". Do cinema estavam, por exemplo, Hector Babenco, Cacá Diegues e Luiz Carlos Barreto; da TV e do teatro, Antonio Fagundes, Glória Perez, Marieta Severo e Maria Adelaide Amaral; do mercado editorial, Ana Cristina Zahar e Luciana Villas-Boas. Os organizadores? A PUC-SP e a TV Globo.

A emissora vem, há alguns meses, se movimentando para conquistar a intelligentsia nacional para uma aliança em torno do que seria a "defesa e valorização da produção artística e intelectual brasileira" -e, por que não?- a defesa e a valorização da própria TV Globo.

Num desses movimentos, Marluce Dias da Silva, diretora-geral da Globo, convidou os principais cineastas do país para visitarem a emissora. A TV levou ao ar uma série publicitária com personalidades que vão desde a empresária Milú Villela, presidente do MAM (Museu de Arte Moderna-SP) ao senador Paulo Paim, do PT, todas louvando as realizações da emissora nas áreas cultural e social. Fez ainda uma série de reportagens sobre a cultura brasileira.

No próprio seminário realizado no Tuca, cineastas lembravam que, em uma de suas conversas com Marluce, nos estúdios da TV, ela foi direta: disse que a emissora fatura, em um ano, o que uma empresa de telefonia celular pode faturar em apenas três meses; e que a emissora é "40 vezes" menor do que a Time-Warner. Uma vez permitido que essas empresas estrangeiras passem a produzir, sem regras rígidas, conteúdo para brasileiros na mídia digital (como TV pela internet, nos próximos anos), a sobrevivência da própria emissora estaria ameaçada. E, junto com ela (calculou a diretora), estaria em risco a sobrevivência dos produtores de cultura nacional. A Globo também está incomodada com a possibilidade de o governo passar a regulamentar fortemente as televisões -cobrando, por exemplo, taxas que seriam destinadas à produção de filmes nacionais.

Os participantes do seminário no Tuca foram divididos em cinco grupos. Esta colunista foi convidada a compor o que discutiu "o impacto da produção estrangeira no mercado cultural e na cultura brasileira".

O fato de a TV Globo promover uma campanha de "valorização" da cultura nacional, ainda que entendido como uma estratégia defensiva, foi definido no grupo como uma "evolução". Houve risos quando foi lembrada uma piada que faz sucesso entre os cineastas: o novo slogan da rede seria: "Globo e PC do B (Partido Comunista do Brasil): tudo a ver!".

O assunto mais discutido foi a necessidade de regulamentação da produção de conteúdo para as novas mídias, de forma a assegurar que, tal qual acontece hoje nas mídias tradicionais, ela permaneça nas mãos de brasileiros.

A produtora Paula Lavigne afirmou que "a indústria cultural brasileira não é uma coitadinha: 80% do mercado de música consome produção nacional. A cultura brasileira reage a qualquer estímulo". O cineasta Paulo Thiago disse que "o povo brasileiro tem o direito de ver seu próprio cinema, seu próprio teatro e sua própria música" e defendeu, por isso, uma forte intervenção do Estado na cultura -outro tema polêmico que tomou conta da reunião.

Coube ao publicitário Roberto Duailibi, da DPZ, a revelação inusitada: o grande concorrente da cultura nacional tem sido -ele de novo!- o Programa Fome Zero do presidente Lula. "As empresas estão deixando de aplicar em cultura para investir no Fome Zero", afirmou Duailibi. "A vocação de adesão do empresário brasileiro é infinita."

As propostas de cada grupo foram redigidas e depois lidas para a platéia dos 70 participantes. A PUC e a Globo planejam novo seminário, agora aberto ao público e até com shows de cantores nacionais.

LÍNGUA PÁTRIA

Ana Ottoni/Folha Imagem
O escritor paraibano Ariano Suassuna


O "xô" de Suassuna

Até a roupa do escritor paraibano Ariano Suassuna é um libelo à brasilidade: ele só usa calças e camisas feitas pela costureira Edith Minervina de Lima, nordestina, e feitas com tecido nacional. Radical, Suassuna já mandou retirar uma faixa, numa universidade, com a palavra "show": "Para mim, isso é xô, de espantar galinha", diz. O escritor abriu o evento realizado no Tuca com uma palestra que levou a platéia às gargalhadas.

"Comecei a escrever aos 17. Em Taperoá havia um médico culto que me emprestou as obras de Ibsen. Foi um impacto muito grande, e eu tentei escrever. Mas vocês podem imaginar a diferença entre a Noruega e o sertão da Paraíba. Então eu parei."

"Desculpem, mas eu tenho um pigarro terrível. Fui secretário de Cultura do Miguel Arraes [governador de Pernambuco], ele pigarreava. E eu ficava num constrangimento terrível porque achavam que eu pigarreava para imitar o chefe."

"Eu gosto muito dos mentirosos -não dos que prejudicam os outros, mas dos que mentem por amor à arte. Estou cultivando um mentiroso de Pernambuco. Ele me contou uma maravilhosa mentira lírica. Disse que o pai era o maior fabricante de mel porque cruzou abelha com vaga-lume -e os bichos trabalham de dia e de noite!"

"Eu estava em casa escrevendo "O Auto da Compadecida" e apareceu um dramaturgo. Perguntou: "É regionalista? Passa no sertão? Tem cangaceiro? Rapaz, ninguém agüenta mais isso!". Ele queria que eu mudasse o nome dos personagens, Chicó e João Grilo, porque eram de difícil tradução no exterior [risos]. Achamos graça, mas isso é muito grave."

"Fui procurado há dez anos pelo Chico Science [que misturava rock com maracatu]. Eu estava de acordo com a parte Chico dele, com a Science, do rock, não. Ele falou que fazia aquilo para valorizar o maracatu. Mas como é que uma coisa ruim valoriza uma coisa boa?"

"O Brasil, rico como é, se deixar embasbacar por esses débeis mentais (...) Quando o John Lennon morreu, meu filho me avisou, e eu perguntei: quem é John Lennon? Eu não sabia! E meu primo, que é pior do que eu, achou que era João Lemos."

"Eu, por mim, reajo! Eu não admito nem... Outro dia chegou um cabra perto de mim e disse: "OK". Eu disse: "Ah! Você Okô?"."

"Aqui mesmo, nesse seminário, eu tive uma decepção tremenda. [No programa] está escrito que às 10h30 tem um "coffee break'! No país do café! Atrás disso existe toda uma política, e isso é grave."

"O Machado de Assis dizia que o Brasil real é bom, mas o país oficial é caricato e grotesco. Se fosse vivo, ele veria que o país oficial hoje está mais caricato e grotesco ainda. Queremos ser grotescamente norte-americanos."

E-mail: bergamo@folhasp.com.br

COM CLEO GUIMARÃES E ALVARO LEME



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