São Paulo, sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

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Crítica/"Karajan Gold"

Coletânea de Karajan revela ostentação próxima ao kitsch

CD duplo que celebra centenário do regente austríaco expressa culto à produção do som em movimentos famosos de obras

IRINEU FRANCO PERPETUO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Começa com o "Prelúdio" da "Carmen", de Bizet, tem o "tchan-tchan-tchan-tchan" da "Quinta" de Beethoven e termina com o "Moldava", de Smetana: tem 21 faixas, e 150 minutos de música, "Karajan Gold", o CD duplo com que a Deutsche Grammophon celebra o centenário de um dos mais célebres regentes do século 20.
Em princípio, um disco desses, um picadinho musical que traz apenas os movimentos mais famosos de obras célebres em vez de trazer as peças inteiras, serviria só aos não-iniciados -por sinal, a qualidade sonora dos fonogramas, bem como a variedade do repertório deste lançamento, faz deste um dos melhores discos para quem quer dar o primeiro passo para deixar de estar completamente por fora do universo da música de concerto.
Em função da efeméride, contudo, o CD também acaba funcionando como um curioso apanhado da carreira do austríaco Herbert von Karajan (1908-1989), cujo poder na vida musical do velho continente chegou a ser tão grande que o levou a ser aclamado como "Generalmusikdiretor (diretor musical geral) da Europa".
Karajan dominou o Festival de Salzburgo, a Ópera de Viena, e controlou, durante 35 anos, com mão de ferro, a Filarmônica de Berlim, que, até sua gestão, talvez já fosse a melhor orquestra do planeta -mas nunca teve tanta visibilidade quanto nos anos Karajan, transformando-se, de uma vez por todas, em referência internacional de qualidade, graças a uma sonoridade rica e luxuriante e a um culto meticuloso e até fetichista do detalhe e da perfeição.
Essa sonoridade obsessivamente cultivada aparece em todo o seu esplendor nos melhores itens de "Karajan Gold".
Obsessivo não apenas no tangente à produção do som mas também no que se refere à sua reprodução (o maestro teve papel ativo no desenvolvimento do CD como mídia), Karajan construiu uma paleta sonora de cores ricas e vivas, ideal para o repertório romântico.

Excelência
Foi durante a gestão do maestro que a orquestra da capital germânica inaugurou, em 1963, a visionária sala concebida por Hans Scharoun, a Philharmonie, cuja acústica deslumbra até hoje os visitantes de Berlim, respondendo aos critérios de excelência do regente da orquestra à época.
Quando Berlim escolheu o estilo "democrático" do italiano Claudio Abbado para suceder Karajan à frente da orquestra, em 1989, parecia evidente que a filarmônica estava empenhada em liqüidar de vez a era de mandos e desmandos dos grandes autocratas da batuta. O que não significava, contudo, fazer "tábula rasa" das conquistas artísticas daquele período.
Em "Karajan Gold" não há como não se impressionar, por exemplo, com os vigorosos metais de "Marte", da suíte "Os Planetas", de Gustav Holst; com a riqueza de detalhes do "Bolero", de Ravel; ou com o som cheio e pleno das cordas do "Intermezzo" da "Cavalleria Rusticana", de Mascagni -em que o regente faz a música soar muito melhor do que ela realmente é.
Claro que a ostentação que parecia ser o ideal de Karajan tanto na música quanto na vida privada (gostava de se comportar como playboy, usando artigos de luxo e carros esporte) o levava a um terreno perigosamente próximo do kitsch.
E, com a vertiginosa mudança de gosto ocorrida a partir dos anos 80, suas leituras do repertório do século 18 soam, hoje, irremediavelmente datadas: na verdade, Karajan às vezes soa como se quisesse vestir toda a história da música com as roupagens vistosas da segunda metade do século 19, como podemos notar, no CD, com os exageros sentimentalóides da "Ária da Quarta Corda", de Bach, ou as cordas wagnerianas da "Primavera", de Vivaldi.
Nesses autores, como em Mozart, a posteridade preferiria as vias da leveza e da transparência trilhadas pela escola da música antiga com instrumentos de época, em vez do caminho pomposo e pesado de Karajan.


KARAJAN GOLD
Artista:
Herbert von Karajan (regente)
Gravadora: Deutsche Grammophon
Quanto: R$ 42 (o CD duplo)
Avaliação: regular


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