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Crítica/"Karajan Gold"
Coletânea de Karajan revela ostentação próxima ao kitsch
CD duplo que celebra centenário do regente austríaco expressa culto à produção do som em movimentos famosos de obras
IRINEU FRANCO PERPETUO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Começa com o "Prelúdio" da "Carmen", de
Bizet, tem o "tchan-tchan-tchan-tchan" da "Quinta" de Beethoven e termina
com o "Moldava", de Smetana:
tem 21 faixas, e 150 minutos de
música, "Karajan Gold", o CD
duplo com que a Deutsche
Grammophon celebra o centenário de um dos mais célebres
regentes do século 20.
Em princípio, um disco desses, um picadinho musical que
traz apenas os movimentos
mais famosos de obras célebres
em vez de trazer as peças inteiras, serviria só aos não-iniciados -por sinal, a qualidade sonora dos fonogramas, bem como a variedade do repertório
deste lançamento, faz deste um
dos melhores discos para quem
quer dar o primeiro passo para
deixar de estar completamente
por fora do universo da música
de concerto.
Em função da efeméride,
contudo, o CD também acaba
funcionando como um curioso
apanhado da carreira do austríaco Herbert von Karajan
(1908-1989), cujo poder na vida
musical do velho continente
chegou a ser tão grande que o
levou a ser aclamado como
"Generalmusikdiretor (diretor
musical geral) da Europa".
Karajan dominou o Festival
de Salzburgo, a Ópera de Viena,
e controlou, durante 35 anos,
com mão de ferro, a Filarmônica de Berlim, que, até sua gestão, talvez já fosse a melhor orquestra do planeta -mas nunca teve tanta visibilidade quanto nos anos Karajan, transformando-se, de uma vez por todas, em referência internacional de qualidade, graças a uma
sonoridade rica e luxuriante e a
um culto meticuloso e até fetichista do detalhe e da perfeição.
Essa sonoridade obsessivamente cultivada aparece em todo o seu esplendor nos melhores itens de "Karajan Gold".
Obsessivo não apenas no tangente à produção do som mas
também no que se refere à sua
reprodução (o maestro teve papel ativo no desenvolvimento
do CD como mídia), Karajan
construiu uma paleta sonora de
cores ricas e vivas, ideal para o
repertório romântico.
Excelência
Foi durante a gestão do
maestro que a orquestra da capital germânica inaugurou, em
1963, a visionária sala concebida por Hans Scharoun, a Philharmonie, cuja acústica deslumbra até hoje os visitantes de
Berlim, respondendo aos critérios de excelência do regente da
orquestra à época.
Quando Berlim escolheu o
estilo "democrático" do italiano Claudio Abbado para suceder Karajan à frente da orquestra, em 1989, parecia evidente
que a filarmônica estava empenhada em liqüidar de vez a era
de mandos e desmandos dos
grandes autocratas da batuta. O
que não significava, contudo,
fazer "tábula rasa" das conquistas artísticas daquele período.
Em "Karajan Gold" não há
como não se impressionar, por
exemplo, com os vigorosos metais de "Marte", da suíte "Os
Planetas", de Gustav Holst;
com a riqueza de detalhes do
"Bolero", de Ravel; ou com o
som cheio e pleno das cordas do
"Intermezzo" da "Cavalleria
Rusticana", de Mascagni -em
que o regente faz a música soar
muito melhor do que ela realmente é.
Claro que a ostentação que
parecia ser o ideal de Karajan
tanto na música quanto na vida
privada (gostava de se comportar como playboy, usando artigos de luxo e carros esporte) o
levava a um terreno perigosamente próximo do kitsch.
E, com a vertiginosa mudança de gosto ocorrida a partir dos
anos 80, suas leituras do repertório do século 18 soam, hoje,
irremediavelmente datadas: na
verdade, Karajan às vezes soa
como se quisesse vestir toda a
história da música com as roupagens vistosas da segunda metade do século 19, como podemos notar, no CD, com os exageros sentimentalóides da
"Ária da Quarta Corda", de
Bach, ou as cordas wagnerianas
da "Primavera", de Vivaldi.
Nesses autores, como em Mozart, a posteridade preferiria as
vias da leveza e da transparência trilhadas pela escola da música antiga com instrumentos
de época, em vez do caminho
pomposo e pesado de Karajan.
KARAJAN GOLD
Artista: Herbert von Karajan
(regente)
Gravadora: Deutsche Grammophon
Quanto: R$ 42 (o CD duplo)
Avaliação: regular
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