São Paulo, sexta-feira, 15 de março de 2002

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"OS SOLITÁRIOS"

Hirsch perde sutileza e muda de água para sangue

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Justamente quando parecia abrir mão de sua insolência de recém-chegado, se conformando com a repetição de procedimentos estéticos belos mas esvaziadores, Felipe Hirsch surge com "Os Solitários" e enche de carne sangrenta os suplementos culturais.
O incômodo e o fascínio divulgados pelas fotos de Flávio Colker, que fundem retalhos de açougue com fragmentos de corpos humanos, são claro aviso do que o público irá enfrentar. Não se inquietem os fãs da estética hirschiniana: continuam presentes as vinhetas caleidoscópicas no telão e a trilha pop em alto volume. Mas dessa vez elas não roubam o foco de um texto vigoroso e inovador e sobretudo de uma atuação antológica de Marco Nanini.
O espetáculo é composto por dois textos de Nicky Silver. "Pterodátilos" foi o texto que o impôs em 1993 no off-Broadway por sua "absurdidade clássica": a mãe esquece o nome da filha adolescente, que por sua vez não consegue se lembrar de seu irmão que volta para casa depois de anos de ausência. O tema da volta ao lar, presente desde a trilogia de Ésquilo e em textos neoclássicos como "The Family Reunion", de Elliot, é também a base de "Homens Gordos de Saia", que Nicky escreveu antes de "Pterodátilos", mas que é de longe mais radical. Preso em uma ilha deserta com sua mãe, únicos sobreviventes de um desastre de avião, e induzido por ela a se alimentar dos cadáveres, o adolescente Bishop evolui de gago a psicopata ao voltar à civilização.
Fragmentário, paródico, repleto de referências pop, Silver é o autor ideal para o projeto de um "teatro da memória" da Sutil Companhia de Hirsch. Por outro lado, a companhia ganha reforços preciosos com os cenários de Daniela Thomas (que expande a idéia presente em "Souvenirs", do cenário que sobe pelas paredes) e a "direção de movimento" de Deborah Colker, que antes da brilhante carreira internacional de coreógrafa já exercia essa função (que dá uma lógica não naturalista para os movimentos, sem cair no teatro-dança) no "Macbeth" de Ulisses Cruz.
Se Marco Nanini e Marieta Severo podem usufruir assim do merecido espaço que a Sutil Companhia conquistou no teatro experimental, seus atores têm muito a ganhar contracenando com intérpretes tão sutis.
Marieta Severo não perde a classe e a beleza mesmo diante das mais grotescas situações, humanizando o patético de suas personagens, que poderiam facilmente cair no caricatural. No mesmo caminho vai Nanini, que em "Pterodátilos" tem a espantosa capacidade de fazer de modo verossímil pai e filha no mesmo espetáculo, com a agilidade camaleônica que o consagrou em "Irma Vap". Mas vai além: em "Homens Gordos de Saia" constrói o perverso polimorfo Bishop numa síntese da família Adams com o pior assassino-adolescente dos filmes B, com um resultado hilariante, comovente e assustador.
Quando Bishop transgride o tabu freudiano, parte do público, indignado, se levanta e sai, com os olhos vazados. É Felipe Hirsch abrindo mão de qualquer prudência para cumprir a sua promessa de um teatro transgressor.


Os Solitários      Direção: Felipe Hirsch Com: Marco Nanini, Marieta Severo, Wagner Moura e Guilherme Weber Onde: teatro Alfa (r. Bento Branco de Andrade Filho, 722, SP, tel. 0/xx/11/ 5693-4000) Quando: sex. e sáb., às 21h, dom., às 18h Quanto: de R$ 25 a R$ 50

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