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MÚSICA
David Byrne lança hoje nos EUA disco em que canta rock, Verdi e Bizet
Mil imagens quebradas de um mundo também aos pedaços
France Presse
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David Byrne, ex-Talking Heads, que lança "Grown Backwards" |
ARTHUR NESTROVISKI
ARTICULISTA DA FOLHA
No outro lado da vida, as
pessoas acordam cedo e vão
trabalhar. Habitam edifícios de
vidro, concreto e pedra. Dançam
à noite em discotecas e bares; ou
tentam encontrar velhos amigos.
Mulheres e homens se agarram às
delícias de si.
Enquanto isso, impérios vão à
guerra: tribulações, revelações e
absolvições se alternam profeticamente, com a convicção de uma
história em quadrinhos.
Daí a surpresa, daí o espanto
-tudo o que é humano lhe é estranho, diz David Byrne numa
das 14 canções de "Grown Backwards". Com a memória em carne viva, repassa mil imagens quebradas de um mundo também
aos pedaços; espantosamente calmo, soa quase feliz, ou etéreo, para usar palavras de uma ária de
Verdi (1813-1901), com que fecha
surpreendentemente o disco.
A expressão "Grown Backwards" pode ser entendida em vários sentidos: "de trás para diante", antes de mais nada, pelas referências. Não apenas Verdi, mas
também Bizet (1838-75), de quem
canta, com Rufus Wainwright, o
dueto "Au Fond du Temple
Saint". De trás para diante porque
aqui a raiz do pop se vê reanimada pela própria descendência. Se
o francês e o italiano cantados são
quase incompreensíveis, isso não
importa: uma ária dessas libera
catarticamente o que as outras
canções não podem ou não querem liberar de modo tão direto.
De trás para diante também pela manufatura. Ao contrário de
seu modo habitual de compor
(primeiro acordes, depois melodias), aqui o processo foi às avessas. Ao longo de meses, o multiartista escocês foi cantarolando pedaços de linhas melódicas num
gravador de mão. Só depois começou a montar as músicas. E as
letras: poesia americana, vibrando sentidos irreais no que há de
mais real e sentido.
De trás para diante, ainda, porque quase tudo aparece invertido,
sob as lentes do compositor-fotógrafo (autor de quatro livros de
arte, incluindo o recente "EEEI").
Se o compositor-etnógrafo podia
vir ao Brasil, em 1989, para filmar
um documentário sobre o Ilê-Ayê; se antes disso já via tudo um
pouco acima do chão, nos anos de
Talking Heads (1976-88); se em
sua gravadora, Luaka Bop, fez ouvir estranhamentos como os da
peruana Susana Baca, do português Paulo Bragança e, com relevo especial, de Tom Zé, ele agora
concentra toda essa experiência
em si, para compor o disco que
define um momento e um lugar.
Observado por "um astronauta", sobrevoando o "ninho das
vespas", o lugar parece real demais, mas também sugere uma
coleção de sonhos, como os que o
próprio Byrne relata no encarte,
em pequenos poemas em prosa,
que criam mais um contraponto
para este disco tão rico. Tanto
mais força ganham as harmonias
chapadas e modulações retas, que
nem por isso deixam de guardar
sutilezas. Figura típica: dó maior-mi maior. Sutilmente abrupto,
eleva o quinto grau, um semitom
entre um acorde e outro. Deslizamentos assim são um equivalente
sonoro dessa arte de ver o que há
de mais concreto e alterar levemente o foco, o suficiente para desentender a imagem.
Daí também a mistura aberratória de instrumentos: a percussão de Mauro Refosco (com marimbas e piano preparado) acomoda-se bem com a orquestra de
cordas Tosca Strings. E com a orquestra de Carla Bley, que participa em "Empire", entoando um
coral de metais que ao mesmo
tempo dramatiza e anula a belicosidade da letra. Da rock-ária à
bossa-rock e ao rock cubano, tudo se reflete e se deforma nessa
casa de espelhos da música.
Do outro lado da vida, as pessoas acordam e trabalham. Moram em vidro e concreto. Dançam, se encontram, se agarram.
Os sintomas só pioram e os impérios entram em guerra. Do lado de
cá, fica o "misterioso outro", de
que fala Verdi, "delícia e cruz do
coração". Vendo no espelho, de
esguelha na esquina, um compositor resiste à ressaca do real. Do
lado de cá, fica a música, reescrevendo tudo de trás para diante, na
desespantada arte de David
Byrne.
Grown Backwards
Artista: David Byrne
Lançamento: Warner/Nonesuch
Quanto: R$ 35, em média
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