São Paulo, segunda-feira, 15 de março de 2004

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MÚSICA

David Byrne lança hoje nos EUA disco em que canta rock, Verdi e Bizet

Mil imagens quebradas de um mundo também aos pedaços

France Presse
David Byrne, ex-Talking Heads, que lança "Grown Backwards"


ARTHUR NESTROVISKI
ARTICULISTA DA FOLHA

No outro lado da vida, as pessoas acordam cedo e vão trabalhar. Habitam edifícios de vidro, concreto e pedra. Dançam à noite em discotecas e bares; ou tentam encontrar velhos amigos. Mulheres e homens se agarram às delícias de si.
Enquanto isso, impérios vão à guerra: tribulações, revelações e absolvições se alternam profeticamente, com a convicção de uma história em quadrinhos.
Daí a surpresa, daí o espanto -tudo o que é humano lhe é estranho, diz David Byrne numa das 14 canções de "Grown Backwards". Com a memória em carne viva, repassa mil imagens quebradas de um mundo também aos pedaços; espantosamente calmo, soa quase feliz, ou etéreo, para usar palavras de uma ária de Verdi (1813-1901), com que fecha surpreendentemente o disco.
A expressão "Grown Backwards" pode ser entendida em vários sentidos: "de trás para diante", antes de mais nada, pelas referências. Não apenas Verdi, mas também Bizet (1838-75), de quem canta, com Rufus Wainwright, o dueto "Au Fond du Temple Saint". De trás para diante porque aqui a raiz do pop se vê reanimada pela própria descendência. Se o francês e o italiano cantados são quase incompreensíveis, isso não importa: uma ária dessas libera catarticamente o que as outras canções não podem ou não querem liberar de modo tão direto.
De trás para diante também pela manufatura. Ao contrário de seu modo habitual de compor (primeiro acordes, depois melodias), aqui o processo foi às avessas. Ao longo de meses, o multiartista escocês foi cantarolando pedaços de linhas melódicas num gravador de mão. Só depois começou a montar as músicas. E as letras: poesia americana, vibrando sentidos irreais no que há de mais real e sentido.
De trás para diante, ainda, porque quase tudo aparece invertido, sob as lentes do compositor-fotógrafo (autor de quatro livros de arte, incluindo o recente "EEEI"). Se o compositor-etnógrafo podia vir ao Brasil, em 1989, para filmar um documentário sobre o Ilê-Ayê; se antes disso já via tudo um pouco acima do chão, nos anos de Talking Heads (1976-88); se em sua gravadora, Luaka Bop, fez ouvir estranhamentos como os da peruana Susana Baca, do português Paulo Bragança e, com relevo especial, de Tom Zé, ele agora concentra toda essa experiência em si, para compor o disco que define um momento e um lugar.
Observado por "um astronauta", sobrevoando o "ninho das vespas", o lugar parece real demais, mas também sugere uma coleção de sonhos, como os que o próprio Byrne relata no encarte, em pequenos poemas em prosa, que criam mais um contraponto para este disco tão rico. Tanto mais força ganham as harmonias chapadas e modulações retas, que nem por isso deixam de guardar sutilezas. Figura típica: dó maior-mi maior. Sutilmente abrupto, eleva o quinto grau, um semitom entre um acorde e outro. Deslizamentos assim são um equivalente sonoro dessa arte de ver o que há de mais concreto e alterar levemente o foco, o suficiente para desentender a imagem.
Daí também a mistura aberratória de instrumentos: a percussão de Mauro Refosco (com marimbas e piano preparado) acomoda-se bem com a orquestra de cordas Tosca Strings. E com a orquestra de Carla Bley, que participa em "Empire", entoando um coral de metais que ao mesmo tempo dramatiza e anula a belicosidade da letra. Da rock-ária à bossa-rock e ao rock cubano, tudo se reflete e se deforma nessa casa de espelhos da música.
Do outro lado da vida, as pessoas acordam e trabalham. Moram em vidro e concreto. Dançam, se encontram, se agarram. Os sintomas só pioram e os impérios entram em guerra. Do lado de cá, fica o "misterioso outro", de que fala Verdi, "delícia e cruz do coração". Vendo no espelho, de esguelha na esquina, um compositor resiste à ressaca do real. Do lado de cá, fica a música, reescrevendo tudo de trás para diante, na desespantada arte de David Byrne.


Grown Backwards
    
Artista: David Byrne
Lançamento: Warner/Nonesuch
Quanto: R$ 35, em média



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