São Paulo, domingo, 15 de março de 2009

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Análise/o diretor

Cineasta reencontra a tradição para transformá-la

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Clint Eastwood não esperou até fazer "Bird" para se tornar um bom diretor. A partir dali, apenas tornou-se mais fácil dissociá-los das figuras do caubói rústico e do policial violento que o haviam tornado famoso.
É verdade que, naquele momento, final dos anos 80, deixam de existir os tateamentos estilísticos dos primeiros anos: Clint adotará então uma linha classicizante, em contraste com vários de seus filmes iniciais (como "O Estranho Sem Nome"), em que o estilo ainda parecia dependente ora de Sergio Leone, pela estilização, ora de Don Siegel, pela franqueza.
Desde ali, no entanto, alguns elementos temáticos surgiam: a presença da morte como referência quase obrigatória, o aspecto sadomasoquista da violência. É aos poucos, na medida em que amadurece, que seus filmes passam a expressar uma preocupação mais marcada com o passado, com aquilo que o tempo representa como perda e dor. É algo que o belíssimo "Bronco Billy" (1980) já anuncia, ao colocar em cena a figura do cowboy deslocado no mundo contemporâneo.
Clint é um dos raros diretores que aprecia, em suas entrevistas, referir seu apego aos filmes clássicos a que assistiu. Não faz isso para agradar aos interlocutores. É com eles, efetivamente, que se dá seu diálogo. Mas não se trata de voltar no tempo, nostalgicamente. Trata-se de reencontrar uma tradição para transformá-la. Assim, em "Os Imperdoáveis", provavelmente seu melhor filme, o herói já não é o caubói, mas o fantasma do caubói: não o tipo heroico construído pelos velhos faroestes, mas um bando de velhacos, bêbados, boçais.
Se o filme clássico é o território da crença, nossa era é a da descrença, da dúvida. O presente precisa se alimentar do passado se quiser crescer, nos lembram os filhos caretas de "As Pontes de Madison". Mas o movimento é pendular: num momento posterior, o velho, o passado, necessita do novo para persistir ("Menina de Ouro"), para não se decompor.
Os filmes de guerra de Clint remetem -mais pela visão do que pelo estilo- a um autor que não costuma citar: Samuel Fuller. Talvez porque Fuller seja um moderno, como Siegel, que toca os problemas de frente. Dizia Fuller que na guerra o único heroísmo consiste em sobreviver, algo que Clint retoma com frequência.
De certa forma, veremos todas essas questões retornarem em "Gran Torino", filme em que a irreversibilidade do tempo é posta de maneira dramática. Assim, o notável "duelo final" baseia-se numa expectativa: a do retorno à ativa do velho cauboí do "western spaghetti". Veremos como Clint faz passado e presente se fundirem com mão de mestre.


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