São Paulo, Segunda-feira, 15 de Março de 1999
Texto Anterior | Índice

FERNANDO GABEIRA
Fronteira máxima é o tabu do incesto

Vargas Llosa andou pelo Brasil e escreveu um artigo sobre o Carnaval, tranquilizando as classes dominantes: a animação sexual é uma garantia de que não haverá revolução no país.
Em outras épocas, talvez questionasse essa tese. O objetivo do Carnaval, pensava eu, não é o de neutralizar potenciais mudanças político-econômicas. Seu impacto se daria mais na própria revolução sexual: três dias de vale-tudo destinados a compensar os outros 363 de relativa frustração amorosa.
Por trás disso havia algumas idéias de 68, Marcuse etc., mas também algum trabalho de observação direta. Colhi inúmeras fotos de mulheres de seios de fora, aclamadas no Sambódromo. Isso numa época em que o topless na praia era punido com jatos de areia e vaias. Mais adiante, era possível cotejar os dados de violência contra travestis e a mania dos homens se vestirem de mulher no Carnaval.
Deixei um pouco de lado essas observações e, de repente, não só o artigo de Vargas Llosa, mas sobretudo o clamor de alguns intelectuais contra o nível da televisão brasileira, indica que me faltava um pouco, naquela época, a visão dinâmica do que se passava e que, talvez, o Brasil seja mesmo um país com constantes mutações sexuais.
Alguns intelectuais clamam contra a axé music, protestam contra a importância que se dá às entrevistas dos cantores de pagode, que estariam tomando o lugar de gente séria. E, horror dos horrores, a qualquer momento em que se liga a televisão há um show de bundas.
São sempre comentários curtos, daí passarem a sensação de que a cultura brasileira evoluía no seu curso normal, quando foi subitamente invadida por bundas, exteriores ao nosso cotidiano como os recantos de Marte.
Nada seria mais falso do que isso. Basta dar uma olhada nos principais trabalhos sobre a vida cotidiana no Brasil, nos processos da Inquisição na Bahia e outros pontos do país para chegar à conclusão de que essa tendência vai fazer 500 anos. É previsível que ganhe novos contornos agora, em que há o mais alto grau de liberdade de expressão.
Curioso é que a mesma indignação contra a bunda na televisão brasileira não se estende ao seio na arte popular norte-americana, embora detone o mesmo grupo de emoções. Basta comparar as capas da "Playboy" americana e brasileira para se constatar a existência de dois universos distintos de preferência erótica.
Quando o tema controle da televisão aparece no Congresso, surge a voz de um pastor evangélico perguntando onde é que vamos parar. Em inúmeros artigos apontei como a evolução do Tchan partiu de uma encenação digital, que termina inclusive com o embalo de um hipotético bebê, inevitável encontro de papai com mamãe. Depois, veio a dança da garrafa e o ciclo se encerrou com alusões à bunda que fizeram despontar Carla Perez como uma estrela popular.
Tiazinha foi um novo passo. Ela introduziu uma dimensão sadomasoquista, caracterizada pela máscara, chicote e depilação dos meninos. Mas quem a observar na capa da "Playboy", que começou com uma tiragem de mais de 1 milhão de exemplares, verá que posou ressaltando a bunda, indicando que a velha mensagem está lá, só que com novos adereços.
O sucesso dos seios e bundas de silicone no Carnaval indica o próximo passo: próteses e, quem sabe, mutilações como no filme "Crash". Mas ainda que se imponham nessa aventura contra o proibido (ou a favor dele, sei lá) podem ser uma resposta definitiva para a pergunta do deputado evangélico: onde é que nós vamos parar.
Se meus deveres cotidianos permitissem, tentaria estudar um pouco para responder melhor ao pastor. No entanto, dentro do horizonte da minha cultura, posso imaginar um marco intransponível, uma espécie de fronteira máxima .
Esse ponto, em que posso garantir que tudo vai parar, a partir do meu nível atual de consciência, é o tabu do incesto.
Não me perguntem também o que vai acontecer no caminho. Quando comparava a desrepressão carnavalesca apenas com a dureza do sexo na vida cotidiana, deixei um pouco de lado essa necessidade de ver a sociedade brasileira em movimento, literalmente.
Tenho a impressão de que as forças que movem os corpos nas telas movem-se também num nível mais profundo do que pode alcançar uma ação de governo ou mesmo um grupo de bem-intencionados cidadãos. Isso porque também tenho a impressão de que tirar a bunda da televisão será um pouco como tirar o sofá da sala. Ela acabará aparecendo em outro lugar. Daí a pouco, um prefeito vai querer tirar da rua, ela reaparece em cima de uma árvore, vai ser o diabo.


Texto Anterior: Outros lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.