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FERNANDO GABEIRA
Fronteira máxima é o tabu do incesto
Vargas Llosa andou pelo Brasil e escreveu um artigo sobre o
Carnaval, tranquilizando as
classes dominantes: a animação sexual é uma garantia de
que não haverá revolução no
país.
Em outras épocas, talvez
questionasse essa tese. O objetivo do Carnaval, pensava eu,
não é o de neutralizar potenciais mudanças político-econômicas. Seu impacto se daria
mais na própria revolução sexual: três dias de vale-tudo destinados a compensar os outros
363 de relativa frustração amorosa.
Por trás disso havia algumas
idéias de 68, Marcuse etc., mas
também algum trabalho de observação direta. Colhi inúmeras fotos de mulheres de seios
de fora, aclamadas no Sambódromo. Isso numa época em
que o topless na praia era punido com jatos de areia e vaias.
Mais adiante, era possível cotejar os dados de violência contra
travestis e a mania dos homens
se vestirem de mulher no Carnaval.
Deixei um pouco de lado essas observações e, de repente,
não só o artigo de Vargas Llosa,
mas sobretudo o clamor de alguns intelectuais contra o nível
da televisão brasileira, indica
que me faltava um pouco, naquela época, a visão dinâmica
do que se passava e que, talvez,
o Brasil seja mesmo um país
com constantes mutações sexuais.
Alguns intelectuais clamam
contra a axé music, protestam
contra a importância que se dá
às entrevistas dos cantores de
pagode, que estariam tomando
o lugar de gente séria. E, horror
dos horrores, a qualquer momento em que se liga a televisão há um show de bundas.
São sempre comentários curtos, daí passarem a sensação de
que a cultura brasileira evoluía
no seu curso normal, quando
foi subitamente invadida por
bundas, exteriores ao nosso cotidiano como os recantos de
Marte.
Nada seria mais falso do que
isso. Basta dar uma olhada nos
principais trabalhos sobre a vida cotidiana no Brasil, nos processos da Inquisição na Bahia e
outros pontos do país para chegar à conclusão de que essa
tendência vai fazer 500 anos. É
previsível que ganhe novos
contornos agora, em que há o
mais alto grau de liberdade de
expressão.
Curioso é que a mesma indignação contra a bunda na televisão brasileira não se estende
ao seio na arte popular norte-americana, embora detone o
mesmo grupo de emoções. Basta comparar as capas da "Playboy" americana e brasileira
para se constatar a existência
de dois universos distintos de
preferência erótica.
Quando o tema controle da
televisão aparece no Congresso, surge a voz de um pastor
evangélico perguntando onde é
que vamos parar. Em inúmeros
artigos apontei como a evolução do Tchan partiu de uma
encenação digital, que termina
inclusive com o embalo de um
hipotético bebê, inevitável encontro de papai com mamãe.
Depois, veio a dança da garrafa e o ciclo se encerrou com alusões à bunda que fizeram despontar Carla Perez como uma
estrela popular.
Tiazinha foi um novo passo.
Ela introduziu uma dimensão
sadomasoquista, caracterizada pela máscara, chicote e depilação dos meninos. Mas
quem a observar na capa da
"Playboy", que começou com
uma tiragem de mais de 1 milhão de exemplares, verá que
posou ressaltando a bunda, indicando que a velha mensagem
está lá, só que com novos adereços.
O sucesso dos seios e bundas
de silicone no Carnaval indica
o próximo passo: próteses e,
quem sabe, mutilações como
no filme "Crash". Mas ainda
que se imponham nessa aventura contra o proibido (ou a favor dele, sei lá) podem ser uma
resposta definitiva para a pergunta do deputado evangélico:
onde é que nós vamos parar.
Se meus deveres cotidianos
permitissem, tentaria estudar
um pouco para responder melhor ao pastor. No entanto,
dentro do horizonte da minha
cultura, posso imaginar um
marco intransponível, uma espécie de fronteira máxima .
Esse ponto, em que posso garantir que tudo vai parar, a
partir do meu nível atual de
consciência, é o tabu do incesto.
Não me perguntem também o
que vai acontecer no caminho.
Quando comparava a desrepressão carnavalesca apenas
com a dureza do sexo na vida
cotidiana, deixei um pouco de
lado essa necessidade de ver a
sociedade brasileira em movimento, literalmente.
Tenho a impressão de que as
forças que movem os corpos
nas telas movem-se também
num nível mais profundo do
que pode alcançar uma ação de
governo ou mesmo um grupo
de bem-intencionados cidadãos. Isso porque também tenho a impressão de que tirar a
bunda da televisão será um
pouco como tirar o sofá da sala.
Ela acabará aparecendo em
outro lugar. Daí a pouco, um
prefeito vai querer tirar da rua,
ela reaparece em cima de uma
árvore, vai ser o diabo.
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