São Paulo, sábado, 15 de abril de 2000


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WALTER SALLES
Filmando a carta de Pero Vaz de Caminha

O correio de minha casa está soterrado por ofertas de produtos "comemorando" o "Descobrimento" do país. Há de tudo, desde descontos de supermercado até uma inacreditável "bolsa 500 anos" de uma grife importada, "em homenagem à mulher brasileira".
Jogo essas bugigangas (e as aspas) no lixo. E já imagino o festim diabólico que vai acontecer no 22 de abril, quando caravelas recém-construídas invadirão as águas poluídas da costa brasileira e da mídia eletrônica.
Não, não pretendo tomar parte na exaltação e posterior indigestão cívica que se prenunciam. Mas, confesso, já houve um tempo em que a descrição que Pero Vaz de Caminha faz da colisão entre dois mundos ontologicamente tão diferentes quanto o do índio e o do invasor europeu me interessou como matéria para um filme.
A carta de Caminha é, antes de mais nada, fascinante por ser descritiva de um território desconhecido do narrador, virgem, portanto, de signos que lhe eram familiares. Borges dizia que o seu maior prazer, na literatura, era o de dar nome àquilo que ainda não havia sido nomeado. A carta de Caminha é a afirmação do desejo de mapear, dar nome a uma nova fronteira, ao mesmo tempo em que revela, com extraordinária clareza, toda uma ordem de preconceitos já contidos no olhar do primeiro colonizador.
Há nessa carta a anunciação aterradora de um porvir, do fim de um mundo edênico, que começa a ser conspurcado no momento em que o homem branco apeia em porto seguro. Seguro, aliás, para quem? -cabe perguntar.
"Certamente não para o índio", disse-me Tom Jobim. "Até porque a primeira coisa que o português fez em terra firme foi cortar uma árvore, sem pedir permissão para o habitante do lugar."
Iniciava-se aí um projeto cuja ambiguidade permanece até hoje. Nomear o país Brasil, ao mesmo tempo em que se corta o pau-brasil. Oferecer aos índios badulaques (um espelho quebrado, uma prensa industrial já ultrapassada), "para melhor amansá-los". Fornecer-lhes agasalhos, cama, colchões e lençóis, os confortos de uma aparente modernidade, "para os mais amansar".
A extraordinária riqueza dos eventos descritos por Caminha poderia inspirar vários filmes diferentes. Em "O Descobrimento do Brasil", realizado em 1937, Humberto Mauro optou por uma reconstituição histórica que acompanha a viagem de Cabral até o final da primeira missa.
Imagino alguns outros filmes possíveis a partir do mesmo material. Aquele que contaria, por exemplo, a história trágica dos índios que voltaram com uma das caravelas para a Europa, para serem exibidos ao rei d. Manuel. Outro ponto de partida interessante poderia opor o olhar de Caminha sobre o índio ao do índio sobre o homem branco, uma estrutura binária que poderia revelar o quanto essas duas visões de mundo eram colidentes. E a do homem branco, excludente.
A carta de Caminha também cria a possibilidade do filme-documento, aquele que poria a nu a visão extrativista dos portugueses. Há aqui igualmente campo para a descrição dos preconceitos sexuais e raciais daqueles que julgam os que lhes são diferentes como "pardos, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas". E o que dizer da descrição feita das índias "bem novinhas, com suas vergonhas tão altas, limpas e cerradinhas" ou do pedido de emprego para o sobrinho no final da carta de Caminha, prenúncio do nepotismo arraigado até hoje no país?
Pessoalmente, eu teria me interessado em contar uma outra história, igualmente contida na carta de Caminha : a dos três personagens que ficaram no novo território por razões diametralmente opostas. O primeiro, Afonso Ribeiro, era um degredado que foi deixado para trás pelos portugueses para descobrir o mapa das riquezas do solo desconhecido. Estava à procura de ouro, prata e tinha por missão continuar a "amansar" os indígenas. Já os dois outros são os personagens mais interessantes dessa história: dois jovens grumetes portugueses que, na última noite antes da partida das naus, optaram por mergulhar no mar e permanecer no novo mundo. São os únicos que aceitam aquilo que vêem, sem projeto aparente de normatização ou subjugação do outro, sem tentar impor as suas próprias crenças a fórceps.
Parece-me que o confronto entre essas duas visões opostas, a do degredado, que só se preocupa em tirar aquilo que a terra oferece da forma mais rápida possível antes de partir, e a dos que se tornam brasileiros por opção, não está tão distante do país caótico em que vivemos hoje. Talvez existam nessa dualidade fundadora (e eventualmente reducionista, concordo) algumas vertentes da crise endêmica brasileira.
Voltando ao 15 de abril de 2000. Não há muito o que comemorar na semana que vem. Mas talvez não tenhamos direito ao simples pessimismo. Para ajudar a encontrar alguma motivação, recorro à memória de Jobim e Guimarães Rosa, de Aleijadinho e Grande Otelo, de Tristão de Athayde e Cartola. Penso que convivemos, hoje, com brasileiros como Fernanda Montenegro e Nelson Pereira dos Santos.
Penso também naqueles que, como Frans Krajcberg ou os grumetes portugueses, deixaram seus países de origem e vieram lutar pelo Brasil. E recorro finalmente a uma frase dita em maio de 1968 e que um amigo me revelou há pouco : "Em tempos como esses, é preciso ser intrinsecamente otimista. O pessimismo, a gente deixa para épocas melhores".


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