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WALTER SALLES
Filmando a carta de Pero Vaz de Caminha
O correio de minha casa está soterrado por ofertas de produtos
"comemorando" o "Descobrimento" do país. Há de tudo, desde
descontos de supermercado até
uma inacreditável "bolsa 500
anos" de uma grife importada,
"em homenagem à mulher brasileira".
Jogo essas bugigangas (e as aspas) no lixo. E já imagino o festim
diabólico que vai acontecer no 22
de abril, quando caravelas recém-construídas invadirão as águas
poluídas da costa brasileira e da
mídia eletrônica.
Não, não pretendo tomar parte
na exaltação e posterior indigestão cívica que se prenunciam.
Mas, confesso, já houve um tempo
em que a descrição que Pero Vaz
de Caminha faz da colisão entre
dois mundos ontologicamente tão
diferentes quanto o do índio e o
do invasor europeu me interessou
como matéria para um filme.
A carta de Caminha é, antes de
mais nada, fascinante por ser descritiva de um território desconhecido do narrador, virgem, portanto, de signos que lhe eram familiares. Borges dizia que o seu maior
prazer, na literatura, era o de dar
nome àquilo que ainda não havia
sido nomeado. A carta de Caminha é a afirmação do desejo de
mapear, dar nome a uma nova
fronteira, ao mesmo tempo em
que revela, com extraordinária
clareza, toda uma ordem de preconceitos já contidos no olhar do
primeiro colonizador.
Há nessa carta a anunciação
aterradora de um porvir, do fim
de um mundo edênico, que começa a ser conspurcado no momento
em que o homem branco apeia
em porto seguro. Seguro, aliás, para quem? -cabe perguntar.
"Certamente não para o índio",
disse-me Tom Jobim. "Até porque
a primeira coisa que o português
fez em terra firme foi cortar uma
árvore, sem pedir permissão para
o habitante do lugar."
Iniciava-se aí um projeto cuja
ambiguidade permanece até hoje. Nomear o país Brasil, ao mesmo tempo em que se corta o pau-brasil. Oferecer aos índios badulaques (um espelho quebrado,
uma prensa industrial já ultrapassada), "para melhor amansá-los". Fornecer-lhes agasalhos, cama, colchões e lençóis, os confortos de uma aparente modernidade, "para os mais amansar".
A extraordinária riqueza dos
eventos descritos por Caminha
poderia inspirar vários filmes diferentes. Em "O Descobrimento
do Brasil", realizado em 1937,
Humberto Mauro optou por uma
reconstituição histórica que
acompanha a viagem de Cabral
até o final da primeira missa.
Imagino alguns outros filmes
possíveis a partir do mesmo material. Aquele que contaria, por
exemplo, a história trágica dos índios que voltaram com uma das
caravelas para a Europa, para serem exibidos ao rei d. Manuel.
Outro ponto de partida interessante poderia opor o olhar de Caminha sobre o índio ao do índio
sobre o homem branco, uma estrutura binária que poderia revelar o quanto essas duas visões de
mundo eram colidentes. E a do
homem branco, excludente.
A carta de Caminha também
cria a possibilidade do filme-documento, aquele que poria a nu a
visão extrativista dos portugueses. Há aqui igualmente campo
para a descrição dos preconceitos
sexuais e raciais daqueles que julgam os que lhes são diferentes como "pardos, sem coisa alguma
que lhes cobrisse suas vergonhas".
E o que dizer da descrição feita
das índias "bem novinhas, com
suas vergonhas tão altas, limpas e
cerradinhas" ou do pedido de emprego para o sobrinho no final da
carta de Caminha, prenúncio do
nepotismo arraigado até hoje no
país?
Pessoalmente, eu teria me interessado em contar uma outra história, igualmente contida na carta de Caminha : a dos três personagens que ficaram no novo território por razões diametralmente
opostas. O primeiro, Afonso Ribeiro, era um degredado que foi
deixado para trás pelos portugueses para descobrir o mapa das riquezas do solo desconhecido. Estava à procura de ouro, prata e tinha por missão continuar a
"amansar" os indígenas. Já os
dois outros são os personagens
mais interessantes dessa história:
dois jovens grumetes portugueses
que, na última noite antes da partida das naus, optaram por mergulhar no mar e permanecer no
novo mundo. São os únicos que
aceitam aquilo que vêem, sem
projeto aparente de normatização ou subjugação do outro, sem
tentar impor as suas próprias
crenças a fórceps.
Parece-me que o confronto entre essas duas visões opostas, a do
degredado, que só se preocupa em
tirar aquilo que a terra oferece da
forma mais rápida possível antes
de partir, e a dos que se tornam
brasileiros por opção, não está tão
distante do país caótico em que
vivemos hoje. Talvez existam nessa dualidade fundadora (e eventualmente reducionista, concordo) algumas vertentes da crise endêmica brasileira.
Voltando ao 15 de abril de 2000.
Não há muito o que comemorar
na semana que vem. Mas talvez
não tenhamos direito ao simples
pessimismo. Para ajudar a encontrar alguma motivação, recorro à memória de Jobim e Guimarães Rosa, de Aleijadinho e Grande Otelo, de Tristão de Athayde e
Cartola. Penso que convivemos,
hoje, com brasileiros como Fernanda Montenegro e Nelson Pereira dos Santos.
Penso também naqueles que,
como Frans Krajcberg ou os grumetes portugueses, deixaram seus
países de origem e vieram lutar
pelo Brasil. E recorro finalmente
a uma frase dita em maio de 1968
e que um amigo me revelou há
pouco : "Em tempos como esses, é
preciso ser intrinsecamente otimista. O pessimismo, a gente deixa para épocas melhores".
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