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CONTARDO CALLIGARIS
Carta aberta a Silvio Santos
Caro Silvio Santos,
Confesso que não sou um
espectador de "Todos contra
Um". No passado, assisti ao
"Show do Milhão" só duas ou três
vezes. Nunca comprei um "carnê
do Silvio".
Mas meus sogros, Heloísa e Valentim, gostam de você. E, como
tenho um grande carinho por
meus sogros, sou grato por todas
as vezes que eles passaram bons
momentos assistindo ao "show do
Silvio".
No ano passado, quando surgiu
o boato de que você estaria doente, uma senhora, minha conhecida, comentou: "Só o que faltava,
não ter mais nem o Silvio". Em
geral, minha turma é crítica e
pensa que você distribui ilusões
como a gente enfia balas nas
mãos dos meninos nos faróis. Mas
eu acho que há um grande mérito
(seu mérito) em conseguir encarnar, para tantos brasileiros, um
sentimento sem o qual é difícil viver: a esperança de que amanhã a
gente tenha um pouco de sorte.
Por isso, permito-me a familiaridade desta carta.
Escrevo-lhe por uma história
que você deve estar cansado de
ouvir: o grupo que você lidera
projeta um shopping center (ou
um centro de convenções) na área
do Bexiga em que surge o Teatro
Oficina, dirigido por Zé Celso
Martinez. Claro, ninguém contesta: o teatro é tombado, pois ele é
um patrimônio insubstituível da
cultura brasileira, tanto por sua
arquitetura quanto pela companhia que ele abriga. Também
imagino, embora eu não conheça
o projeto em sua fase atual, que
nenhum arquiteto se proporia a
encapsular o Oficina num casulo
de edifícios. Então, qual é o problema?
O problema, como você sabe, é o
espaço ao redor do Oficina. É necessário um recuo suficiente para
que a luz do dia e o sol atravessem
livremente a parede de vidro que,
com o teto retrátil, faz do Oficina
esta raridade: uma sala de teatro
aberta para o mundo. Além disso,
no terreno ao lado e nos fundos
do teatro, o projeto do Oficina
prevê uma arena aberta e locais
para atividades que vão além da
produção de peças: um lugar de
lazer e educação teatral para as
crianças do Bexiga que freqüentam o Oficina, um centro de estudos etc.
Pouco importam os detalhes.
Meu pedido é apenas este: que você se disponha a encontrar Zé Celso ou autorize seu arquiteto a encontrar Zé Celso. No diálogo, é
óbvio que se manifestarão interesses contrastantes, mas poderia
também surgir o desejo comum
de construir algo que seja bom
para o Bexiga, para São Paulo,
para o Brasil e para o teatro.
Sobre o Oficina, você já deve saber tudo o que importa. Se não for
o caso, outros poderão lhe dizer
melhor do que eu. Mas nada vale
a experiência. Aposto (sem consultar ninguém) que a companhia se disporia a recebê-lo para
uma representação só para você,
quem sabe um condensado das
duas partes de "O Homem". Mas
deixe que lhe conte uma história.
Eu fui uma criança bem-comportada, numa cidade ferida pela
guerra, Milão, na Itália. Um pouco por medo de que encontrasse
uma bomba não explodida nos
escombros, um pouco por respeitabilidade burguesa, meus pais
não queriam que brincasse na
rua. Ia para a escola, estudava e
brincava no meu quarto.
Era raro, mas acontecia duas
ou três vezes por ano, que um circo visitasse a cidade. Quando era
um circo grande, passava um Fiat
600 gritando pelo alto-falante:
"De volta da mirabolante turnê
que o levou aos quatro cantos do
Universo, ainda fremente pelos
aplausos das multidões de Londres, Paris e Istambul, está em
Milão o grande circo Togni;
crianças, tragam seus pais; elefantes, leões, tigres da Bessarábia
[nunca soube se há mesmo tigres
na Bessarábia], os trapezistas de
Moscou que arriscam sua vida
sem rede, o homem-bala de Praga, os cavalos da grande escola de
Viena".
Eu, na verdade, preferia os circos pobres, que se instalavam perto de casa. Nesse caso, o alto-falante vinha na mão do palhaço
que abria um pequeno desfile de
saltimbancos, malabaristas,
anões, mulher barbada, homem-serpente e um ou dois bichos, um
macaco, um cavalo.
Insistia tanto que meus pais
achavam graça e deixavam que
eu fosse a mais de uma representação do mesmo circo. Nunca
souberam que o espetáculo, para
mim, era duplo. Certo, admirava
os corpos magicamente bonitos
em suas roupas furadas de paetê;
comovia-me com o drama do pateta, vítima do clown branco; gritava quando a trapezista voava
no céu. Mas, no intervalo e depois
do espetáculo, gostava de passear,
meio às escondidas, entre os reboques que serviam de casa ao povo
do circo. Tinha cheiro de sopa caseira, de roupa lavada e de malhas suadas, risos, gritos de brigas,
portas entreabertas que mostravam espelhos, maquiagens e panelas. As duas coisas juntas, o espetáculo e os bastidores, eram,
para mim, uma única experiência: foi ali que aprendi para sempre, acho, que é possível sonhar
sem deixar de gostar da vida concreta.
Ora, quando vou para o Oficina, sinto a mesma alegria de
quando era dia de circo na cidade. Não freqüento os bastidores
do teatro. Não é preciso, porque o
Oficina é construído para que
não haja muita diferença entre
cena, platéia e bastidores e porque a magia de seus espetáculos é
esta: transformar em teatro a fúria, a euforia, a miséria e a paixão
da vida concreta.
Em suma, caro Silvio Santos, receba este escrito como se fosse a
carta de uma criança que lhe pede ajuda para que nosso melhor
circo continue e cresça.
Obrigado e um abraço,
Contardo
ccalligari@uol.com.br
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