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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Bendita seja a doença!
"Tropa de Elite" é
o filme mais adulto
que vi no moderno cinema brasileiro
A GRIPE tem as suas vantagens:
numa cultura pateticamente
dominada pela velocidade e
pelo tempo, a doença vem, instala-se
pelo corpo e obriga qualquer moribundo a retomar contato com a sua
precária humanidade.
Não sou exceção: deitado na cama,
com o termômetro em aceitáveis
39º, o momento exige repouso, líquidos vários, alguns gemidos, um
bom livro e um bom filme.
O livro foi escrito por Joseph Horowitz, antigo crítico musical do
"New York Times", e dá pelo nome
de "Artists in Exile: How Refugees
from Twentieth-Century War and
Revolution Transformed the American Performing Arts" (artistas no
exílio: como refugiados da guerra e
da revolução no século 20 transformaram as artes americanas, HarperCollins, 480 págs., US$ 27,50,
cerca de R$ 46,40, mais frete). Leio a
prosa de Horowitz e lembro, instintivamente, as discussões correntes
sobre a "globalização", ou seja, sobre
a nefasta "americanização" do mundo, normalmente combatida com
delírios e passeatas. Vocês conhecem a filosofia: a "cultura americana" é dominante e, pela sua lógica
opressiva e imperial, acaba por submeter as culturas periféricas à tirania de um único gosto.
A conversa talvez seja interessante em asilos psiquiátricos. Não funciona no mundo real. Desde logo,
porque não existe "cultura americana", um bloco uniforme que aponta
para um único horizonte estético.
Existem culturas heterogêneas,
contraditórias no interior de um
mesmo país. E, para agravar o quadro mental dos simples, o que passa
por "cultura americana" é, na verdade, o resultado do contributo de diferentes artistas, de diferentes partes do mundo, com diferentes sensibilidades, que partiram em busca do
seu espaço.
Aconteceu na primeira metade do
século 20, e Joseph Horowitz é primoroso em cartografar esse fenômeno. A Europa não teve vida fácil
com totalitarismos políticos e duas
guerras mortíferas? Fato. Mas a desgraça de uns, às vezes, é uma benesse para outros, e as turbulências européias levaram milhares de artistas
e intelectuais para os EUA, uma experiência que, em solo relativamente virgem, permitiu um renascimento artístico que dura até hoje.
Horowitz é particularmente entusiasta de George Balanchine, o exilado russo que encontrou nos "belos
corpos americanos" a matéria-prima do seu balé americano: uma dança poderosamente atlética e vital.
Mas não só Balanchine. O cinema
de Hollywood (reinventado por
Murnau ou Fritz Lang e servido pelos rostos de Garbo ou Dietrich), a literatura de Nabokov, as composições de Varèse e até a cenografia de
Boris Aronson atestam a multiplicidade cosmopolita da América.
Escusado será dizer que este influxo de sangue mundial continua até
hoje. Não apenas por que os Estados
Unidos continuam a ser porta de entrada para artistas do mundo inteiro. Mas por que os próprios americanos "de raiz", aqueles que presumivelmente representam a "cultura
americana", não existiriam sem a
forte presença do mundo neles próprios. Não existiria Woody Allen
sem Bergman; Marlon Brando sem
Stanislavski; Stephen Sondheim
sem Ravel ou Berlioz.
Não é a "cultura americana" que
domina o mundo. Ironicamente,
talvez seja o mundo que forma e
transforma a "cultura americana".
E o filme? Ah, o filme. Durante
meses fui resistindo. Valeria a pena
assistir a "Tropa de Elite", o filme de
José Padilha que venceu em Berlim
e deu polêmica no Brasil? Confesso:
não sou cliente de filmes que procuram explicar o crime com a pobreza,
uma tese que sempre me pareceu
ofensiva para gente pobre, mas honrada. Um pobre não é, por definição,
um assassino.
Erro meu. O filme de Padilha surpreende. E uma seqüência é a "chave" para entender a obra: quando os
universitários discutem, com aprovação do professor, "Vigiar e Punir",
o estudo de Foucault sobre o sistema prisional como instrumento de
submissão e poder. Toda a gente
aplaude Foucault, transplantando
as suas teses para o Rio dos nossos
dias: a polícia é a face da repressão,
os criminosos são vítimas e etc.
No meio dessa orgia de irracionalismo, é Matias, o policial-estudante
que fala com experiência, quem coloca as coisas na sua devida proporção: os bandidos são bandidos; alguns policiais são corruptos; mas a
fonte do mal está em meninos de
classe média ou alta que "romantizam" a marginalidade e, ao mesmo
tempo, alimentam o tráfico. Silêncio
na turma. E aplauso em mim. "Tropa de Elite" é o filme mais adulto que
vi no moderno cinema brasileiro.
Bendita seja a doença!
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