São Paulo, quarta-feira, 15 de abril de 2009

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MARCELO COELHO

Arte da indústria


Léger, em cartaz na Pinacoteca, foi um dos que mais incorporaram a textura das máquinas


CABELOS QUE BRILHAM como chapas de metal. Braços e pernas tubulares, como calhas ou chaminés. Rostos inexpressivos, não mais que um esquema de olhos, boca e nariz. Dos pintores do começo do século 20, Fernand Léger (1881-1955) foi provavelmente um dos que mais incorporaram em seus quadros a estética da vida industrial, a rudeza do trabalho mecânico, a textura das máquinas e dos materiais de construção.
O corpo humano, diz ele num dos escritos de "Funções da Pintura" (editora Nobel), não deve mais ser considerado na pintura como algo que tenha "valor sentimental ou expressivo". Cabe ao artista moderno tratá-lo "como um objeto", igual a qualquer outro.
Essa convicção, aparentemente austera, não dá ideia da imensa alegria, do senso de festividade quase ingênuo, que tomam conta dos quadros de Léger, na exposição que está em cartaz na Pinacoteca do Estado. Muitos artistas modernos se preocuparam, é claro, com a questão da técnica, da indústria, da urbanização. Excetuando as celebrações mais estridentes do futurismo, parece entretanto prevalecer um sentimento de angústia, ou pelo menos de ironia, na maioria deles.
Os surrealistas cercavam objetos industriais (um telefone, um ferro elétrico) de uma "disfuncionalidade" inquietante: abate-se sobre tudo um silêncio de pesadelo, uma indagação fantasmagórica, que não é possível formular em palavras. Para outros artistas, o humano tenta sobreviver em desespero, aos gritos, contra as ameaças da vida anônima das cidades.
Na maior parte do tempo, os quadros de Léger parecem expressar felicidade diante desse anonimato, dessa mecanização. Não há silêncio nem desespero: coisas e figuras cantam, dançam e giram atleticamente, cobertas de cores afirmativas. Esse espírito "positivo" do artista francês é sem dúvida um dos fatores a aproximá-lo do modernismo brasileiro. Industrialização, progresso, velocidade urbana não eram, para os modernistas, inimigos do Brasil selvagem, mítico, tropical. Essas duas realidades, aparentemente opostas, podiam ser saudadas com o mesmo entusiasmo. Varriam do mapa, com efeito, aquilo que os modernistas identificavam como falso, artificial, afetado: o sentimentalismo romântico, a arquitetura empetecada do século 19, a retórica bacharelesca, os refinamentos parnasianos.
Postos lado a lado na exposição da Pinacoteca, os quadros de Tarsila do Amaral e de Fernand Léger apresentam semelhanças quase que didáticas, de tão evidentes. Tarsila conheceu Léger em Paris, e os mesmos cabelos de metal, braços e pernas de fantoche, plantas e árvores parecendo tubulações, transferem-se de um quadro a outro.
No livro "A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars" (Imprensa Oficial/Edusp), Alexandre Eulalio (1932-1988) escreve páginas inacreditavelmente precisas e detalhadas a respeito da influência de Léger sobre Tarsila. Vendo a exposição, talvez seja possível imaginar o inverso também. Embora Léger nunca tenha estado no Brasil, alguns de seus quadros e projetos para cenários de teatro parecem, por vezes, retratar cenas de carnaval de rua, ou de bumba-meu-boi. Nada mais de acordo com o programa antropofágico, como se sabe. A própria ideia do corpo humano como "um objeto qualquer", formulada por Léger, já é um passo no caminho da sua devoração.
Mas o que mais surpreende, em meio à estética explosiva, robusta e viril de Léger, é o quanto os quadros de Tarsila, afinal de contas bem alegres em suas cores brasileiras e no seu falso "primitivismo", terminam parecendo um pouco melancólicos. Estão ali as palmeiras, as casas coloridas do morro, uma torre Eiffel de brinquedo, trenzinhos, estações, estradinhas... Só que, nessa junção de paisagem bucólica e signos de progresso técnico, parece faltar uma coisa essencial: o movimento.
Quando Léger pinta uma cena de circo, ou quando mostra os operários de um arranha-céu suspensos entre vigas de ferro, a sensação do espectador é que o volume espesso daqueles corpos, sua mineralidade proletária, está pronto para sair voando no céu limpo. As festas interioranas de Tarsila, com todo seu perfume de mato e tinta fresca, não deixam de impregnar-se também de um certo ar de estagnação.
É a poesia da estagnação, talvez: coisa que todo brasileiro conhece bem, e de que, no fundo, até que não desgosta tanto assim.

coelhofsp@uol.com.br


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