São Paulo, quinta-feira, 15 de abril de 2010

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NINA HORTA

Cozinha autêntica


Era escutar, dizer que sim com a cabeça e transcrever a aula, proibido era cozinhar


Vocês não acham que a cozinha chinesa está meio deixada de lado? Fui sempre fiel a ela, uma das maiores do mundo, fonte de inspiração para todas as outras, cheia de sabedoria, de graça, de ingredientes, de misturas e, principalmente, de prazer. Comprei três livros que tratam dela, modernamente. O primeiro é "Serve the People" (sirva as pessoas, em tradução livre), de Jen Lin-Liu, um guia de comidas e memórias de uma chino-americana, jornalista na China de hoje.
Resolveu, até para aperfeiçoar seu mandarim, fazer um curso de culinária em Pequim, um curso básico, numa escola técnica para futuros cozinheiros. Era escutar, dizer que sim com a cabeça e transcrever a aula. O professor a olhava com muita desconfiança se fazia perguntas. E o mais proibido de tudo era cozinhar. Estranhou um pouco a classe só de homens, sentiu-se discriminada e conseguiu que uma das professoras lhe desse aulas particulares. Conseguiu um cutelo afiado e uma tábua. No começo não precisava de mais.
Cozinhavam sem muitas medidas, a olho, na verdade, mas as técnicas, sim, eram muito precisas. "Cortar em tirinhas" é expressão que não existe na China. Há dezenas de termos para "cortar", baseados no ângulo -horizontal, diagonal ou perpendicular- e nos movimentos do corte -empurrar, puxar para si, serrar ou ondear.
Aprendeu a frequentar as feiras ou pequenos mercados e a passar o dia regateando e escolhendo os melhores produtos. A melhor sensação foi quando os pasteizinhos recheados, muito frescos, cozidos e comidos na hora, passaram a fazer parte de seu dia, uma rotina sem problemas. E descobriu que uma festa em torno daqueles pastéis poderia ser um ponto alto de alegria e boa convivência.
Assustou-se com a aula de glutamato monossódico, que era tratado como sal ou vinagre, sem problemas. Emprego era difícil, foi trabalhar numa tenda de ramen, fazendo e servindo macarrão em tigelas fumegantes, em centenas de variedades. Além de poderem ser feitos de quase todo grão existente no mundo, podiam ser comidos frios em molho de gergelim ou amendoim. É claro que experimentou os exotismos, como cachorro, pênis de animais, escorpiões no palitinho, que ela descreve sobre um fundo de pós-revolução e transformações da vida chinesa.
No outono de 2006, Jen-Lin Liu foi trabalhar num dos mais modernos e conhecidos restaurantes de Xangai.
Sua comida variada era henbang, "nouvelle cuisine". A cozinha e a brigada pareciam estar numa China do futuro, onde regras eram obedecidas, a qualidade era importante e o chef se tornara humano.
A atenção para com a limpeza e qualidade pesava no preço. (No restante da China, comia-se com dez dólares. Lá, a refeição custava 50.) Uma cozinha chinesa de hotel cinco estrelas tinha que ter pelo menos três chefs. Um para os dim-sum, outro para os woks e ainda um chefe-geral de operações.
Essa comida nova foi a que a autora mais pesquisou, em razão das tradições e para ver o que o restante da China achava dela.
Ao refletir, percebeu que a comida "autêntica" era relativa. Estava em Xangai, comendo a comida de lá, feita por um cozinheiro de lá e muitos chineses não a consideravam autêntica.
Qual seria a comida autêntica de Xangai? Seria a comida básica que o povo comia antes que a cidade se transformasse num porto importante, quando era totalmente livre de influências estrangeiras? Ou era henbang, a fusão bastarda pela qual Xangai se tornou conhecida durante sua era colonial? Seriam os pratos criativos do melhor cozinheiro de lá?
Quando as pessoas falam em "autêntico" não levam em conta que a comida está sempre mudando e se adaptando, um reflexo da cidade que muda e se transforma...
Tem mais. Volto.

ninahorta@uol.com.br


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