São Paulo, quinta-feira, 15 de abril de 2010

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A Recoleta é aqui?

A convite da Folha, o poeta Fabrício Corsaletti, que viveu em Buenos Aires, compara o bairro gastronômico portenho à região da rua Mato Grosso, em Higienópolis

FABRÍCIO CORSALETTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Comer e beber diante de um cemitério, e ainda por cima num domingo nublado, não é a mesma coisa que comer e beber de frente pro mar, numa terça-feira de férias e com sol. Mas traçar um galeto desossado, matando uma garrafa de vinho tinto e olhando os mausoléus do outro lado da rua provoca uma melancolia bem-vinda, fácil de aceitar.
Pensando essas besteiras, na semana passada fui conhecer a região de Higienópolis (nas imediações da rua Mato Grosso, ou seja, contígua ao cemitério da Consolação) que nos últimos anos viu surgirem diversos bares e restaurantes que lhe valeram o apelido de "Consoleta" por comparação com o bairro da Recoleta, em Buenos Aires, cujos palacetes em estilo francês e a gastronomia de alto nível se tornaram tão célebres quanto seu cemitério.
Em duas visitas ao local -numa quarta-feira à noite e num sábado à tarde-, bebi e comi com a voracidade de um Anthony Bourdain, autor do maravilhoso "Em Busca do Prato Perfeito": vinho chileno e arroz-jasmim com camarões no Anita; vinho argentino e ojo de bife no La Frontera (que eu não conseguia resolver se era a divisa entre o Brasil e a Argentina ou o limiar entre a vida e a morte); cerveja e tábua de frios no Becco 388; dry martini e sanduíche de salmão defumado na Mercearia do Francês; de novo cerveja porém agora com magret de pato no Ici. Sou apenas um glutão sem critérios e nada tenho a dizer sobre a qualidade dos pratos e das bebidas, mas estava tudo muito bom.
Em todo caso, quando à meia-noite saí do Becco 388 e desci a rua Mato Grosso pela calçada do cemitério, pra observar as fachadas e a praça Vitor del Mazo de um ângulo mais conveniente, me dei conta de que aquela área -que começa a ganhar uma identidade mas ainda está longe de ter uma cara própria- já tem um nome, e ele é só uma piada com um bairro de outra cidade.
Disse em voz alta (não tinha ninguém por perto): Consoleta, console, consoante, consolidado, cônsul, consolação! Eu devia estar meio bêbado, mas Consoleta me pareceu bizarro. Como a boca de uma velha desfigurada por cirurgias plásticas sucessivas, com os lábios cheios de batom, contando uma anedota política dentro de um elevador apertado. Desisti da ronda absurda e peguei um táxi.
No caminho pra casa me lembrei da Recoleta, onde passei seis meses de 2005, graças ao aluguel pra lá de barato que a mãe de uma amiga me cobrava pelo seu apartamento na avenida del Libertador. Eu estava desempregado, e o pouco dinheiro que tinha eu fazia durar o máximo, porque não queria voltar a trabalhar.
Assim, não frequentava o bairro em que dormia, indo procurar "minha turma" nos bairros de classe média. Por outro lado, todas as manhãs, enquanto marchava na direção da avenida Santa Fé, pra além dos limites da Recoleta, via aqueles edifícios cor de baunilha -e tinha a sensação de que eram eternos. Não imaginava que um empreendimento imobiliário fosse botar tudo abaixo e construir no lugar, digamos, "o maior shopping da América Latina" ou qualquer porcaria do gênero. Se no futuro eu tivesse a chance de visitar Buenos Aires mais uma vez, os prédios da Recoleta ainda estariam lá.
Torço pra que a Consoleta, apesar do nome forçado, se desenvolva e dure. Sempre que sobrar uma grana, pretendo beber perto dos túmulos de Mário e Oswald de Andrade. No entanto, depois de 13 anos em São Paulo, não posso deixar de desconfiar do que promete existir -e de repente desaparece. Bem quando a gente estava começando a gostar.


FABRÍCIO CORSALETTI é escritor e autor de "Esquimó" (Companhia das Letras) e "Golpe de Ar" (Editora 34)


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