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A Recoleta é aqui?
A convite da Folha, o poeta Fabrício Corsaletti, que viveu em Buenos Aires, compara o bairro gastronômico portenho à região da rua Mato Grosso, em Higienópolis
FABRÍCIO CORSALETTI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Comer e beber diante de um
cemitério, e ainda por cima
num domingo nublado, não é a
mesma coisa que comer e beber
de frente pro mar, numa terça-feira de férias e com sol. Mas
traçar um galeto desossado,
matando uma garrafa de vinho
tinto e olhando os mausoléus
do outro lado da rua provoca
uma melancolia bem-vinda, fácil de aceitar.
Pensando essas besteiras, na
semana passada fui conhecer a
região de Higienópolis (nas
imediações da rua Mato Grosso, ou seja, contígua ao cemitério da Consolação) que nos últimos anos viu surgirem diversos
bares e restaurantes que lhe valeram o apelido de "Consoleta"
por comparação com o bairro
da Recoleta, em Buenos Aires,
cujos palacetes em estilo francês e a gastronomia de alto nível se tornaram tão célebres
quanto seu cemitério.
Em duas visitas ao local -numa quarta-feira à noite e num sábado à tarde-, bebi e comi com a voracidade de um Anthony Bourdain, autor do maravilhoso "Em Busca do Prato Perfeito": vinho chileno e arroz-jasmim com camarões no Anita; vinho argentino e ojo de bife no La Frontera (que eu não conseguia resolver se era a divisa entre o Brasil e a Argentina ou o limiar entre a vida e a morte); cerveja e tábua de frios no Becco 388; dry martini e sanduíche de salmão defumado na Mercearia do Francês; de novo cerveja porém agora com magret de pato no Ici. Sou apenas um glutão sem critérios e nada
tenho a dizer sobre a qualidade
dos pratos e das bebidas, mas
estava tudo muito bom.
Em todo caso, quando à
meia-noite saí do Becco 388 e
desci a rua Mato Grosso pela
calçada do cemitério, pra observar as fachadas e a praça Vitor del Mazo de um ângulo
mais conveniente, me dei conta
de que aquela área -que começa a ganhar uma identidade
mas ainda está longe de ter uma
cara própria- já tem um nome,
e ele é só uma piada com um
bairro de outra cidade.
Disse em voz alta (não tinha
ninguém por perto): Consoleta,
console, consoante, consolidado, cônsul, consolação! Eu devia estar meio bêbado, mas
Consoleta me pareceu bizarro.
Como a boca de uma velha desfigurada por cirurgias plásticas
sucessivas, com os lábios cheios
de batom, contando uma anedota política dentro de um elevador apertado. Desisti da ronda absurda e peguei um táxi.
No caminho pra casa me
lembrei da Recoleta, onde passei seis meses de 2005, graças
ao aluguel pra lá de barato que a
mãe de uma amiga me cobrava
pelo seu apartamento na avenida del Libertador. Eu estava desempregado, e o pouco dinheiro que tinha eu fazia durar o
máximo, porque não queria
voltar a trabalhar.
Assim, não frequentava o
bairro em que dormia, indo
procurar "minha turma" nos
bairros de classe média. Por outro lado, todas as manhãs, enquanto marchava na direção da
avenida Santa Fé, pra além dos
limites da Recoleta, via aqueles
edifícios cor de baunilha -e tinha a sensação de que eram
eternos. Não imaginava que um
empreendimento imobiliário
fosse botar tudo abaixo e construir no lugar, digamos, "o
maior shopping da América Latina" ou qualquer porcaria do
gênero. Se no futuro eu tivesse
a chance de visitar Buenos Aires mais uma vez, os prédios da
Recoleta ainda estariam lá.
Torço pra que a Consoleta,
apesar do nome forçado, se desenvolva e dure. Sempre que
sobrar uma grana, pretendo beber perto dos túmulos de Mário
e Oswald de Andrade. No entanto, depois de 13 anos em São
Paulo, não posso deixar de desconfiar do que promete existir
-e de repente desaparece. Bem
quando a gente estava começando a gostar.
FABRÍCIO CORSALETTI é escritor e autor de
"Esquimó" (Companhia das Letras) e "Golpe de
Ar" (Editora 34)
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