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MARCELO COELHO
De ratos teleguiados
A clonagem humana não
me assusta muito. Fiquei
com medo é da experiência que fizeram na Universidade do Estado
de Nova York há pouco mais de
uma semana. Implantaram um
chip nas costas de um rato, de
modo a controlar seus movimentos, suas reações e -vá lá- seus
pensamentos.
De um laptop, os cientistas
orientavam o animal. O rato passou a agir como um robô. Um rato teleguiado. Puseram-no dentro
de um labirinto, e ele não teve dificuldades para chegar até a saída. Ouvi no rádio que, segundo os
pesquisadores, o rato até se sente
mais feliz. Seu nível de estresse diminuiu.
Some-se a isso a notícia, ainda
mais recente, de que nos Estados
Unidos já estão implantando
chips em seres humanos. Os chips
contêm dados médicos da pessoa.
Assim, se eu for atropelado, lá
vai estar meu tipo sanguíneo, minhas alergias, o telefone dos meus
parentes e, por que não, o comprovante de que pago em dia meu
plano de saúde. O chip também é
útil em caso de sequestro: poderei
ser sempre rastreado, em qualquer toca em que me enfiem. A
não ser que resolvam, "para minha própria segurança", extirpar
o órgão em que estiver implantado o chip.
Talvez eu até agradeça a meus
sequestradores. Pois o chip, como
o do ratinho acima, cedo ou tarde
haverá de me teleguiar também.
Serei imperceptivelmente conduzido a uma loja da Nike, irei de
bom grado à estréia do "Homem-Aranha" e depois sentirei vontade de comer um Big Mac.
Bom, tudo já é mais ou menos
assim, mas com um chip será melhor.
Como se sabe, as histórias de ficção científica deixaram de se situar no futuro e deixaram de ser
ficção. Seu principal tema, hoje
em dia, é justamente o fim das
barreiras entre ficção e realidade,
real e virtual etc.
Filmes como "Matrix" e "O
Show de Truman" -não, não
vou comentá-los- podem até
mostrar essa situação como um
pesadelo, mas não adianta. O
"script" da rebeldia individual
não é o que têm de mais fascinante. A mensagem pode ser muito
"libertadora", mas sua linguagem já é totalmente computadorizada, seus personagens são holográficos, e o estilo, o figurino, o
cenário, tudo parece ao mesmo
tempo faiscante e oleoso, enjoativo e milimétrico, desumano e irresistível. O virtual sempre acaba
vitorioso em nossa mente.
Como introduzir a rebelião
dentro desse espaço? Como pode
haver contestação num meio tão
pegajoso, hipnótico e reluzente?
Não só a tela do computador parece nos sugar, mas também o
mundo das marcas, das imagens,
das embalagens, da publicidade e
do entretenimento já parece ter-se fechado à nossa volta, sem deixar saída.
Não entendo nada do assunto,
mas fui parar num site que lida
com isso. Contestação na internet, tecnoanarquismo, "hackers",
"ciberpunks", um monte de coisas
e de palavras que eu não conhecia
e que me fizeram sentir bem moderneto: além dos "hackers", os
"phreakers", os "crackers", os
"zippies", "cypherpunks" e "otakus".
Não me peça para explicar. Há
hoje um movimento bem amplo
de contestação de esquerda à globalização, do qual o mínimo que
se pode dizer é que não tem nada
de atrasado, pré-histórico, parado no tempo.
Esse site (www.rizoma.net) é
moderno até dizer chega. Visualmente, é muito bonito e desconcertante; no começo, nem sabemos bem onde clicar. Para quem
defende movimentos de crítica e
desestabilização nos "interstícios
do sistema", nada mais apropriado do que um visual descontínuo,
onde o cursor deve explorar as
frestas, os lugares ocultos e mutantes da paisagem que se vê na
tela.
Daí, é entrar numa série de páginas esquisitas, com nomes mais
ainda. A seção "conspirologia"
trata de teorias malucas de manipulação. Por exemplo, o uso de
microondas na repressão a movimentos de rua, ou os efeitos neurológicos dos adoçantes artificiais, ou as milícias secretas do
papa João Paulo 2º.
Outra seção fala dos "primitivos
modernos" ou "modprims". O
que se discute aqui são os pontos
de contato entre xamanismo e
piercing, faquirismo e invasão
tecnológica do corpo ou os poderes ocultos que intervêm no funcionamento de mecanismos de
informação complexos como a
net.
Sexo, transgressão e tecnologia
se misturam; o site tem uma lógica muito distante daquele ensaísmo de esquerda que se conhece.
Há coisas curiosas a comentar.
Quando "rizoma" fala de conspirações estranhas ou cita autores a
esta altura famosos do "ciberpunk", não sabemos o que é para
levar a sério e o que não é.
A própria indiscriminação entre o real e o virtual é absorvida
por essas táticas de oposição. Os
limites entre diversão e militância
tampouco são claros. Vanguarda
política e tecnologia da informação procuram articular-se mutuamente -o que talvez seja inédito na história da esquerda.
Às vezes, tudo parece coisa de
quem leu histórias em quadrinhos demais. Mas não são frivolidades adolescentes as questões da
propriedade intelectual, do controle da informação, da publicidade, das marcas registradas.
Um tênis é produzido por cinco
dólares na Tailândia e passa a
valer uns 150 depois de ganhar o
símbolo da Nike. Estamos diante
do velho "valor agregado" a garantir a riqueza dos países do Primeiro Mundo, em face das matérias-primas compradas a preço de
banana no mundo subdesenvolvido.
Claro que esse valor é puramente imaginário -que me importa,
por exemplo, se essa lancheira banalíssima é a do Rei Leão?-, mas
é muito real também -experimente comprar outra para o seu
sobrinho.
Desse modo, a confusão entre
real e imaginário parece ser efeito
de um sistema em que cultura,
tecnologia e capital se sobrepõem
indissociavelmente. Não é de estranhar que seus adversários procurem agir nesse campo também.
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