São Paulo, quarta-feira, 15 de maio de 2002

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MARCELO COELHO

De ratos teleguiados

A clonagem humana não me assusta muito. Fiquei com medo é da experiência que fizeram na Universidade do Estado de Nova York há pouco mais de uma semana. Implantaram um chip nas costas de um rato, de modo a controlar seus movimentos, suas reações e -vá lá- seus pensamentos.
De um laptop, os cientistas orientavam o animal. O rato passou a agir como um robô. Um rato teleguiado. Puseram-no dentro de um labirinto, e ele não teve dificuldades para chegar até a saída. Ouvi no rádio que, segundo os pesquisadores, o rato até se sente mais feliz. Seu nível de estresse diminuiu.
Some-se a isso a notícia, ainda mais recente, de que nos Estados Unidos já estão implantando chips em seres humanos. Os chips contêm dados médicos da pessoa.
Assim, se eu for atropelado, lá vai estar meu tipo sanguíneo, minhas alergias, o telefone dos meus parentes e, por que não, o comprovante de que pago em dia meu plano de saúde. O chip também é útil em caso de sequestro: poderei ser sempre rastreado, em qualquer toca em que me enfiem. A não ser que resolvam, "para minha própria segurança", extirpar o órgão em que estiver implantado o chip.
Talvez eu até agradeça a meus sequestradores. Pois o chip, como o do ratinho acima, cedo ou tarde haverá de me teleguiar também. Serei imperceptivelmente conduzido a uma loja da Nike, irei de bom grado à estréia do "Homem-Aranha" e depois sentirei vontade de comer um Big Mac.
Bom, tudo já é mais ou menos assim, mas com um chip será melhor.
Como se sabe, as histórias de ficção científica deixaram de se situar no futuro e deixaram de ser ficção. Seu principal tema, hoje em dia, é justamente o fim das barreiras entre ficção e realidade, real e virtual etc.
Filmes como "Matrix" e "O Show de Truman" -não, não vou comentá-los- podem até mostrar essa situação como um pesadelo, mas não adianta. O "script" da rebeldia individual não é o que têm de mais fascinante. A mensagem pode ser muito "libertadora", mas sua linguagem já é totalmente computadorizada, seus personagens são holográficos, e o estilo, o figurino, o cenário, tudo parece ao mesmo tempo faiscante e oleoso, enjoativo e milimétrico, desumano e irresistível. O virtual sempre acaba vitorioso em nossa mente.
Como introduzir a rebelião dentro desse espaço? Como pode haver contestação num meio tão pegajoso, hipnótico e reluzente? Não só a tela do computador parece nos sugar, mas também o mundo das marcas, das imagens, das embalagens, da publicidade e do entretenimento já parece ter-se fechado à nossa volta, sem deixar saída.
Não entendo nada do assunto, mas fui parar num site que lida com isso. Contestação na internet, tecnoanarquismo, "hackers", "ciberpunks", um monte de coisas e de palavras que eu não conhecia e que me fizeram sentir bem moderneto: além dos "hackers", os "phreakers", os "crackers", os "zippies", "cypherpunks" e "otakus".
Não me peça para explicar. Há hoje um movimento bem amplo de contestação de esquerda à globalização, do qual o mínimo que se pode dizer é que não tem nada de atrasado, pré-histórico, parado no tempo.
Esse site (www.rizoma.net) é moderno até dizer chega. Visualmente, é muito bonito e desconcertante; no começo, nem sabemos bem onde clicar. Para quem defende movimentos de crítica e desestabilização nos "interstícios do sistema", nada mais apropriado do que um visual descontínuo, onde o cursor deve explorar as frestas, os lugares ocultos e mutantes da paisagem que se vê na tela.
Daí, é entrar numa série de páginas esquisitas, com nomes mais ainda. A seção "conspirologia" trata de teorias malucas de manipulação. Por exemplo, o uso de microondas na repressão a movimentos de rua, ou os efeitos neurológicos dos adoçantes artificiais, ou as milícias secretas do papa João Paulo 2º.
Outra seção fala dos "primitivos modernos" ou "modprims". O que se discute aqui são os pontos de contato entre xamanismo e piercing, faquirismo e invasão tecnológica do corpo ou os poderes ocultos que intervêm no funcionamento de mecanismos de informação complexos como a net.
Sexo, transgressão e tecnologia se misturam; o site tem uma lógica muito distante daquele ensaísmo de esquerda que se conhece. Há coisas curiosas a comentar. Quando "rizoma" fala de conspirações estranhas ou cita autores a esta altura famosos do "ciberpunk", não sabemos o que é para levar a sério e o que não é.
A própria indiscriminação entre o real e o virtual é absorvida por essas táticas de oposição. Os limites entre diversão e militância tampouco são claros. Vanguarda política e tecnologia da informação procuram articular-se mutuamente -o que talvez seja inédito na história da esquerda.
Às vezes, tudo parece coisa de quem leu histórias em quadrinhos demais. Mas não são frivolidades adolescentes as questões da propriedade intelectual, do controle da informação, da publicidade, das marcas registradas.
Um tênis é produzido por cinco dólares na Tailândia e passa a valer uns 150 depois de ganhar o símbolo da Nike. Estamos diante do velho "valor agregado" a garantir a riqueza dos países do Primeiro Mundo, em face das matérias-primas compradas a preço de banana no mundo subdesenvolvido.
Claro que esse valor é puramente imaginário -que me importa, por exemplo, se essa lancheira banalíssima é a do Rei Leão?-, mas é muito real também -experimente comprar outra para o seu sobrinho.
Desse modo, a confusão entre real e imaginário parece ser efeito de um sistema em que cultura, tecnologia e capital se sobrepõem indissociavelmente. Não é de estranhar que seus adversários procurem agir nesse campo também.


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