São Paulo, sábado, 15 de maio de 2004

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"A VIDA BREVE"

Autor uruguaio estrutura seu romance em três narrativas paralelas, cada uma com sua trama policialesca

Onetti escapa à realidade e ressuscita a literatura

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

"A Vida Breve" (1950), do uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-94), é considerado um dos precursores do romance latino-americano da segunda metade do século 20. De fato, o livro precedeu muita gente, de Cortázar a Vargas Llosa, abrindo o caminho para a encenação de uma realidade que não se deixa classificar claramente como fantástica, mas se mantém entre a vigília e o sono, no limite do pesadelo e da demência.
Onetti tornou visível o que está por trás do processo de criação de qualquer romance, por mais realista que seja. Expôs num mesmo plano realidade, desejo e imaginação. Trouxe para o primeiro plano o que Juan José Saer chama de "realidade da ficção".
Expoente da melhor prosa latino-americana, embora menos conhecido do que seus contemporâneos, Onetti constrói seu romance (que chega finalmente ao Brasil numa bela tradução de Josely Vianna Baptista) por meio de uma estrutura aparente de três narrativas paralelas, cada uma com a sua trama nebulosa e policialesca, que terminam por se imbricar.
A primeira é a realidade em que vive o narrador, sob a ameaça de ser demitido de uma agência de publicidade, com a mulher convalescente de uma mastectomia (remoção da mama). A relação entre os dois está por um fio. A segunda é a "realidade" do apartamento da vizinha, que o narrador deduz ser uma prostituta pelo que ouve através da parede. A terceira é a "realidade" de Santa María, onde o narrador situa a ação fictícia de um roteiro de cinema que ele escreve com o objetivo de ganhar dinheiro e salvar sua vida.
Tanto o apartamento da vizinha como a ação do roteiro em Santa María (cidade imaginária que Onetti vai celebrar daí em diante em seus contos) são uma combinação do desejo com a imaginação do narrador. No apartamento vizinho, ele vai projetar toda uma história a partir do que ouve, mas não vê. Enquanto isso, povoa Santa María de personagens misteriosos, inspirados na memória ou em impressões furtivas da realidade em que vive. O próprio tema do romance passa a ser o processo de criação de uma narrativa de ficção.
Aos poucos, ficção e realidade se embaralham. Os três territórios (o cotidiano, o desejo e a imaginação) e as três mulheres de cada um deles vão se confundindo na cabeça do narrador, que também se divide em três, se projeta no protagonista do roteiro de cinema e cria um outro personagem para si quando decide por fim bater à porta da vizinha. A interseção e a simultaneidade dos três planos criam uma realidade mais complexa e ambígüa, em que a subjetividade é o pivô, o filtro e a lente do que se vê.
Graças à ação do narrador, que decide entrar num espaço antes reservado à sua especulação, ao que imaginava ou apenas ouvia pela parede, Onetti produz uma imagem muito feliz da literatura, dando realidade ao que era imaginação. Mais que isso, cria a consciência no leitor de um desdobramento e de um espelhamento infinito e borgiano da ficção.
Se Santa María e o apartamento ao lado são formas da imaginação e do desejo do narrador para escapar à realidade em que vive, para fazer ressuscitar no mundo da ficção o seu cotidiano agonizante, pode-se imaginar também que a realidade em que vive o narrador é uma forma correlata que o autor (Onetti) encontrou para escapar à sua realidade, e se salvar, já que se trata de um romance.
"A Vida Breve" abre uma reflexão em abismo sobre a realidade e a literatura: quem escreve escapa a uma realidade, mas também a recria infinitamente ao escrever sobre alguém que escreve para escapar à realidade. E, assim, ressuscita na literatura.


A Vida Breve
    
Autor: Juan Carlos Onetti
Editora: Planeta
Quanto: R$ 45 (319 págs.)



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