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"A VIDA BREVE"
Autor uruguaio estrutura seu romance em três narrativas paralelas, cada uma com sua trama policialesca
Onetti escapa à realidade e ressuscita a literatura
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
"A Vida Breve" (1950), do
uruguaio Juan Carlos
Onetti (1909-94), é considerado
um dos precursores do romance
latino-americano da segunda metade do século 20. De fato, o livro
precedeu muita gente, de Cortázar a Vargas Llosa, abrindo o caminho para a encenação de uma
realidade que não se deixa classificar claramente como fantástica,
mas se mantém entre a vigília e o
sono, no limite do pesadelo e da
demência.
Onetti tornou visível o que está
por trás do processo de criação de
qualquer romance, por mais realista que seja. Expôs num mesmo
plano realidade, desejo e imaginação. Trouxe para o primeiro plano o que Juan José Saer chama de
"realidade da ficção".
Expoente da melhor prosa latino-americana, embora menos conhecido do que seus contemporâneos, Onetti constrói seu romance (que chega finalmente ao Brasil
numa bela tradução de Josely
Vianna Baptista) por meio de
uma estrutura aparente de três
narrativas paralelas, cada uma
com a sua trama nebulosa e policialesca, que terminam por se imbricar.
A primeira é a realidade em que
vive o narrador, sob a ameaça de
ser demitido de uma agência de
publicidade, com a mulher convalescente de uma mastectomia
(remoção da mama). A relação
entre os dois está por um fio. A segunda é a "realidade" do apartamento da vizinha, que o narrador
deduz ser uma prostituta pelo que
ouve através da parede. A terceira
é a "realidade" de Santa María,
onde o narrador situa a ação fictícia de um roteiro de cinema que
ele escreve com o objetivo de ganhar dinheiro e salvar sua vida.
Tanto o apartamento da vizinha
como a ação do roteiro em Santa
María (cidade imaginária que
Onetti vai celebrar daí em diante
em seus contos) são uma combinação do desejo com a imaginação do narrador. No apartamento
vizinho, ele vai projetar toda uma
história a partir do que ouve, mas
não vê. Enquanto isso, povoa Santa María de personagens misteriosos, inspirados na memória ou
em impressões furtivas da realidade em que vive. O próprio tema
do romance passa a ser o processo
de criação de uma narrativa de
ficção.
Aos poucos, ficção e realidade
se embaralham. Os três territórios
(o cotidiano, o desejo e a imaginação) e as três mulheres de cada
um deles vão se confundindo na
cabeça do narrador, que também
se divide em três, se projeta no
protagonista do roteiro de cinema
e cria um outro personagem para
si quando decide por fim bater à
porta da vizinha. A interseção e a
simultaneidade dos três planos
criam uma realidade mais complexa e ambígüa, em que a subjetividade é o pivô, o filtro e a lente
do que se vê.
Graças à ação do narrador, que
decide entrar num espaço antes
reservado à sua especulação, ao
que imaginava ou apenas ouvia
pela parede, Onetti produz uma
imagem muito feliz da literatura,
dando realidade ao que era imaginação. Mais que isso, cria a consciência no leitor de um desdobramento e de um espelhamento infinito e borgiano da ficção.
Se Santa María e o apartamento
ao lado são formas da imaginação
e do desejo do narrador para escapar à realidade em que vive, para
fazer ressuscitar no mundo da ficção o seu cotidiano agonizante,
pode-se imaginar também que a
realidade em que vive o narrador
é uma forma correlata que o autor
(Onetti) encontrou para escapar à
sua realidade, e se salvar, já que se
trata de um romance.
"A Vida Breve" abre uma reflexão em abismo sobre a realidade e
a literatura: quem escreve escapa
a uma realidade, mas também a
recria infinitamente ao escrever
sobre alguém que escreve para escapar à realidade. E, assim, ressuscita na literatura.
A Vida Breve
Autor: Juan Carlos Onetti
Editora: Planeta
Quanto: R$ 45 (319 págs.)
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