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NELSON ASCHER
Contra-indicações
Deixei, por algumas semanas, de aparecer neste espaço, mas nem por isso convém
supor que saí de férias. Não, eu
não estava bronzeando meus bíceps volumosos, cada qual com
uma âncora tatuada em tamanho natural, nas praias freqüentadas por minha turma de surfe,
mergulho e iatismo. Tampouco
pescava à beira de um lago junto
à fronteira canadense, ainda
mais porque, pior do que um crime ecológico, seria a rigor um
desperdício nutricional assassinar bichos que, de sangue bem
mais frio que o meu, jamais seriam candidatos a meu cardápio.
Não me dirigi nem ao topo do
Tirol austríaco com o intuito de
deslizar por suas escarpas abaixo
com meu velho par de esquis, nem
ao sopé do Himalaia de onde, ostentando meu exímio alpinismo
nas montanhas erradas (pois praticá-lo ali deveria ser chamado de
"himalaísmo"), eu o galgaria intrépido rumo às alturas sub-estratosféricas do K2, sobretudo
porque, se o tivesse tentado, o presente artigo alcançaria seu público hipotético (e bem-vindo) menos através da mídia do que graças a um médium.
Quem, por outro lado, imagine
que aproveitei o recente intervalo
(e julguem os leitores se foi longo
o bastante ou insuficientemente
breve) pondo em dia (semana,
mês, ano etc.) a leitura, preenchendo as lacunas vorazes de minha (in)cultura cinematográfica
e pictórica, deleitando-me novamente com melodias e vozes que
ouvira pela última vez numa vitrola, pode igualmente, "to make
a short story long", "mudar de lugar, fazendo(-o) sair de onde está
ou fica, retirar" seu "diminuto,
ínfimo, infinitesimal, insignificante, microscópico, minúsculo"
"mamífero perissodátilo da fam.
dos eqüídeos ("Equus caballus'),
nativo das estepes da Europa e da
Ásia, mas encontrado em todo o
mundo como animal doméstico"
do "fenômeno que resulta da condensação do vapor de água contido na atmosfera em pequenas gotas que, quando atingem peso suficiente, se precipitam sobre o solo
muito próximas umas das outras".
E se, no entretempo, debruçando-me a sério (malgrado tardiamente, como a liberdade) sobre a
poesia de Alberto Caeiro, constatei que "O Guardador de Rebanhos" é uma criação peculiarmente complexa e singularmente
assustadora (ou seja, e essa é uma
ameaça, não falta o que pontificar a seu respeito), a verdade que
importa, nua e crua, é, como de
costume, banal e depressiva. Observavam os sérvios acerca dos
otomanos que estes lhes cravavam, pelas costas, a faca no peito.
Já o Secretário de Defesa dos
EUA, Donald Rumsfeld, célebre
colecionador de frases de efeito,
acrescentou há pouco uma nova
a seu florilégio: "Em Washington,
amigo é quem apunhala pela
frente". Quanto a mim, eu fui
atacado pelas costas. Literalmente: pelas minhas costas. Num confronto afrontoso, minha primeira
coluna, a vertebral, converteu-se
em definitivo na quinta, a traiçoeira.
Foi assim: uma dor que, subversiva, corrosiva e desmoralizante,
vinha se insinuando entre minhas derradeiras (caso sejam
contadas a partir de cima) vértebras, não apenas se arraigou,
mais e mais aguda, de vez, como,
de resto, alastrou-se, latejante, insistente, teimosa, pelas áreas vizinhas, sem que nenhuma possível
posição, exceto a ainda não experimentada horizontalidade subterrânea, se mostrasse capaz de
aliviá-la. Após consultar e me
submeter, sem melhoras sensíveis,
a variados doutores, quiropratas,
acupunturistas, fisioterapeutas e
demais almas bem-intencionadas, resignei-me, a contragosto,
aos analgésicos que, potentes, reduziam meu tormento na proporção inversa à do sono que dilatavam.
Outros especialistas, aliados a
máquinas recém-saídas do forno,
levantaram a suspeita de uma
mínima artrose "Ô rage! ô désespoir! ô vieillesse ennemie! / N'ai-je
donc tant vécu que pour cette infamie?" (Pierre Corneille, Le Cid",
ato 1, cena 4) ou, numa versão livre, "Que saco a meia-idade! Fui
chegar / Aqui só pra sofrer de dor
lombar?" que estaria incomodando um insignificante (para os médicos) nervinho. Ato contínuo
(somente, "hélas", o segundo do
drama), fazendo de mim um boneco de vodu, espetaram-me entre os ossos quatro agulhas imensas, descomunais, com as quais
infiltraram substâncias enigmáticas na região. Placar (até o momento) do primeiro tempo: 7 x 3
contra a dor (que andava ganhando de 10 x 0). Dizem que o
bom é inimigo do melhor e/ou do
perfeito. A esta altura, no entanto, uma vez que o outro (mais ou
menos como o teria formulado
Augusto dos Anjos) pousou mesmo na minha sorte, eu me contento com um urubu raquítico na
mão.
Dar, portanto, as costas, antes
anestesiada do que estoicamente,
a tamanhos achaques dorsais
permitiu que meus dedos voluptuosos regressassem ao teclado
que, erógeno (ou entediado), os
aguardava. Conseguir voltar a escrever, porém, ainda não é uma
razão decente para voltar a escrever, pois, como o sempre citável
Karl Kraus lembrava, quem o fazia era só quem não tinha o caráter necessário para evitá-lo. Eu
voltei, agora pra ficar. Mas por
quê?
De início, pelo seguinte motivo:
não cabe, a quem se exima de destoar abertamente da unanimidade bovina, reclamar do consenso
pastoso que nos rodeia. E há também, é claro, dividendos divertidos. Como ignorar, por exemplo,
a estima, a popularidade, o carinho que opiniões inconvenientes
rendem nas rodas intelectuais
brasileiras, no Fórum Social de
Porto Alegre, nas chancelarias da
União Européia, nas ONGs, em
Davos e nas cavernas afegãs? Outubro está chegando e, com ele,
aqueles vale-brindes escandinavos. Se não com o de Literatura,
este ano posso (quem sabe?) sonhar com o Nobel da Paz.
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