São Paulo, segunda-feira, 15 de maio de 2006

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NELSON ASCHER

Contra-indicações

Deixei, por algumas semanas, de aparecer neste espaço, mas nem por isso convém supor que saí de férias. Não, eu não estava bronzeando meus bíceps volumosos, cada qual com uma âncora tatuada em tamanho natural, nas praias freqüentadas por minha turma de surfe, mergulho e iatismo. Tampouco pescava à beira de um lago junto à fronteira canadense, ainda mais porque, pior do que um crime ecológico, seria a rigor um desperdício nutricional assassinar bichos que, de sangue bem mais frio que o meu, jamais seriam candidatos a meu cardápio.
Não me dirigi nem ao topo do Tirol austríaco com o intuito de deslizar por suas escarpas abaixo com meu velho par de esquis, nem ao sopé do Himalaia de onde, ostentando meu exímio alpinismo nas montanhas erradas (pois praticá-lo ali deveria ser chamado de "himalaísmo"), eu o galgaria intrépido rumo às alturas sub-estratosféricas do K2, sobretudo porque, se o tivesse tentado, o presente artigo alcançaria seu público hipotético (e bem-vindo) menos através da mídia do que graças a um médium.
Quem, por outro lado, imagine que aproveitei o recente intervalo (e julguem os leitores se foi longo o bastante ou insuficientemente breve) pondo em dia (semana, mês, ano etc.) a leitura, preenchendo as lacunas vorazes de minha (in)cultura cinematográfica e pictórica, deleitando-me novamente com melodias e vozes que ouvira pela última vez numa vitrola, pode igualmente, "to make a short story long", "mudar de lugar, fazendo(-o) sair de onde está ou fica, retirar" seu "diminuto, ínfimo, infinitesimal, insignificante, microscópico, minúsculo" "mamífero perissodátilo da fam. dos eqüídeos ("Equus caballus'), nativo das estepes da Europa e da Ásia, mas encontrado em todo o mundo como animal doméstico" do "fenômeno que resulta da condensação do vapor de água contido na atmosfera em pequenas gotas que, quando atingem peso suficiente, se precipitam sobre o solo muito próximas umas das outras".
E se, no entretempo, debruçando-me a sério (malgrado tardiamente, como a liberdade) sobre a poesia de Alberto Caeiro, constatei que "O Guardador de Rebanhos" é uma criação peculiarmente complexa e singularmente assustadora (ou seja, e essa é uma ameaça, não falta o que pontificar a seu respeito), a verdade que importa, nua e crua, é, como de costume, banal e depressiva. Observavam os sérvios acerca dos otomanos que estes lhes cravavam, pelas costas, a faca no peito. Já o Secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, célebre colecionador de frases de efeito, acrescentou há pouco uma nova a seu florilégio: "Em Washington, amigo é quem apunhala pela frente". Quanto a mim, eu fui atacado pelas costas. Literalmente: pelas minhas costas. Num confronto afrontoso, minha primeira coluna, a vertebral, converteu-se em definitivo na quinta, a traiçoeira.
Foi assim: uma dor que, subversiva, corrosiva e desmoralizante, vinha se insinuando entre minhas derradeiras (caso sejam contadas a partir de cima) vértebras, não apenas se arraigou, mais e mais aguda, de vez, como, de resto, alastrou-se, latejante, insistente, teimosa, pelas áreas vizinhas, sem que nenhuma possível posição, exceto a ainda não experimentada horizontalidade subterrânea, se mostrasse capaz de aliviá-la. Após consultar e me submeter, sem melhoras sensíveis, a variados doutores, quiropratas, acupunturistas, fisioterapeutas e demais almas bem-intencionadas, resignei-me, a contragosto, aos analgésicos que, potentes, reduziam meu tormento na proporção inversa à do sono que dilatavam.
Outros especialistas, aliados a máquinas recém-saídas do forno, levantaram a suspeita de uma mínima artrose "Ô rage! ô désespoir! ô vieillesse ennemie! / N'ai-je donc tant vécu que pour cette infamie?" (Pierre Corneille, Le Cid", ato 1, cena 4) ou, numa versão livre, "Que saco a meia-idade! Fui chegar / Aqui só pra sofrer de dor lombar?" que estaria incomodando um insignificante (para os médicos) nervinho. Ato contínuo (somente, "hélas", o segundo do drama), fazendo de mim um boneco de vodu, espetaram-me entre os ossos quatro agulhas imensas, descomunais, com as quais infiltraram substâncias enigmáticas na região. Placar (até o momento) do primeiro tempo: 7 x 3 contra a dor (que andava ganhando de 10 x 0). Dizem que o bom é inimigo do melhor e/ou do perfeito. A esta altura, no entanto, uma vez que o outro (mais ou menos como o teria formulado Augusto dos Anjos) pousou mesmo na minha sorte, eu me contento com um urubu raquítico na mão.
Dar, portanto, as costas, antes anestesiada do que estoicamente, a tamanhos achaques dorsais permitiu que meus dedos voluptuosos regressassem ao teclado que, erógeno (ou entediado), os aguardava. Conseguir voltar a escrever, porém, ainda não é uma razão decente para voltar a escrever, pois, como o sempre citável Karl Kraus lembrava, quem o fazia era só quem não tinha o caráter necessário para evitá-lo. Eu voltei, agora pra ficar. Mas por quê?
De início, pelo seguinte motivo: não cabe, a quem se exima de destoar abertamente da unanimidade bovina, reclamar do consenso pastoso que nos rodeia. E há também, é claro, dividendos divertidos. Como ignorar, por exemplo, a estima, a popularidade, o carinho que opiniões inconvenientes rendem nas rodas intelectuais brasileiras, no Fórum Social de Porto Alegre, nas chancelarias da União Européia, nas ONGs, em Davos e nas cavernas afegãs? Outubro está chegando e, com ele, aqueles vale-brindes escandinavos. Se não com o de Literatura, este ano posso (quem sabe?) sonhar com o Nobel da Paz.


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