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A arte do queijo em risco
Feito de leite cru em quatro microrregiões mineiras e de acordo com tradição secular, queijo artesanal corre risco de desaparecer
JANAINA FIDALGO
ENVIADA ESPECIAL À SERRA DA CANASTRA (MG)
O dia nem bem clareou quando a labuta começa. É preciso
levar o rebanho ao estábulo,
abastecer os cochos com silagem e ir chamando, pelo nome,
vaca por vaca à sala de ordenha.
Aí, vêm os bezerros, que não só
atendem pelo nome da mãe como ainda acham a teta certa.
Mamam o primeiro jorro de
leite do dia, o mesmo líquido rico que há mais de dois séculos é
empregado, da maneira como é
ordenhado -cru e morno-, na
fabricação de um queijo artesanal que, de orgulho mineiro,
corre o risco de morrer.
O queijo curado, robusto, feito para aproveitar o excesso de
leite e resistir ao sacolejo, no
lombo dos burros, pelas serras
mineiras, existe ainda hoje e é
produzido praticamente da
mesma maneira, embora não
seja tão fácil encontrá-lo maturado como costumava ser.
"Queijo bom é queijo curado", ouve-se, a todo momento,
de um e de outro. Todos ali, nas
regiões produtoras, herdeiros
ou não da tradição atribuída
aos colonizadores portugueses,
guardam alguma relação com o
queijo e, ao menor assentimento, discorrem, sem pressa, sobre o tema. Fica mais clara a ligação mineira com o queijo de leite cru quando se descobre
que há cerca de 27 mil famílias
envolvidas na produção em todo o Estado, segundo a Emater-MG (Empresa de Assistência
Técnica e Extensão Rural).
"Por que temos a tradição da
indústria do laticínio? Porque
ela nasceu nessa origem, na
produção do queijo artesanal",
diz o historiador José Newton
Coelho Meneses, 51, professor
da Escola de Veterinária da
Universidade Federal de Minas
Gerais e autor do dossiê de instrução do processo de pesquisa
feito para o Iphan.
Por queijo artesanal, entende-se aquele feito de leite cru,
que expressa a cultura e a tradição de determinadas regiões, e
que em nada lembra o difundido "queijo minas", mirrado e
pobre de gosto, produzido com
leite pasteurizado, encontrado
(e fabricado) de norte a sul.
E não só. Ao leite cru ordenhado hoje, acrescenta-se o
"pingo" de ontem -um fermento natural, repleto de bactérias lácticas, colhido do soro
drenado dos queijos moldados
no dia anterior. É o "pingo" que dá identidade ao
queijo, sabor, textura e cor que
diferencia um do Serro de um
da Canastra; um de Araxá de
um do Alto Paranaíba/Cerrado
-microrregiões tradicionais e
demarcadas pela Emater-MG.
No Serro, o queijo é menor,
consumido mais fresco, tem
maior acidez, coloração mais
clara e consistência macia. Na
Canastra, é maior e amarelado,
além de ser consumido mais
maturado. O do Alto Paranaíba/Cerrado e o de Araxá são parecidos com o da Canastra, porém mais suaves.
A concorrência do leite
Num cenário com tantos
produtores, em geral organizados em pequenas propriedades
e com produção fundamentada
no trabalho familiar, parece
improvável que a tradição possa definhar. Mas muitos a têm
trocado por outras mais lucrativas e menos trabalhosas, como a venda direta do leite.
Nascido em Vargem Bonita,
Antônio Teixeira de Souza, 67,
o Antônio da Estelita, como é
conhecido em São Roque de
Minas, onde vive e trabalha,
deixou de fabricar queijo, apesar de ser um dos poucos registrados pelo IMA (Instituto Mineiro de Agropecuária). O órgão fiscaliza se os produtores
atendem às exigências da lei estadual, como o uso de água clorada e filtrada, exames de brucelose e tuberculose e normas
de higiene, entre outras.
"Fui lutando, fiz empréstimo
para construir a casinha [queijaria] e arrumá-la conforme a
lei. Pelejei, mas não consegui
um preço bom", conta Souza.
O valor recebido pelo quilo
do queijo artesanal oscila o ano
todo. Na última semana, quando a Folha visitou São Roque
de Minas e Medeiros, havia
produtores cobrando de
R$ 6,30 a R$ 12, de acordo com
o tempo de cura e de fatores como a dificuldade de escoar o
alimento. É aí que entram em
cena os "queijeiros", como são
chamados os atravessadores
que levam o queijo, nem sempre em boas condições, para
outros Estados. A legislação federal permitir o comércio fora
de Minas desde que os queijos
passem por entrepostos cifados, onde devem ficar em maturação durante 60 dias.
"É um comércio que não remunera o produtor de forma
adequada pelos investimentos
que ele tem de fazer para construir a queijaria e se adequar à
legislação. Esse é o principal
entrave, que se traduz em falta
de marketing, de profissionalismo, numa logística defeituosa e até na falta de informação
do consumidor. Não tem como
melhorar o preço de um produto sem comprovar porque ele
vale mais", avalia o veterinário
Gilson Assis Sales, 27, da Aprocan (Associação dos Produtores de Queijo Canastra).
O produtor e presidente da
associação, João Carlos Leite,
43, diz que essa é uma tradição
secular que tende a acabar.
"Meu tataravô, meu bisavô,
meu avô e meu pai faziam queijo artesanal. Dos meus cinco irmãos, só eu faço. Os outros
abandonaram, porque é uma
atividade que não tem mais
rentabilidade. Fiquei porque
dá prazer pensar que naquilo
vai uma cultura familiar", diz
Leite. "Mas tem uns que dizem
que não voltam mais para o
queijo. Entre defender uma
cultura e dar uma condição de
vida melhor para a família, vão
escolher a segunda opção."
Um dos caminhos para valorizar o produto é a indicação
geográfica das microrregiões,
já que cada uma tem especificidades em razão do clima, da vegetação, da topografia e da flora
microbiana do ambiente. O
processo está tramitando e
deve ser encaminhado, em breve, ao INPI (Instituto Nacional
da Propriedade Industrial).
"A indicação geográfica fará
com que somente os produtores locados na região possam
usar o nome dela em seus queijos, o que não acontece hoje.
Quase todo o Estado "produz"
queijo Canastra", diz Sales.
Entre a fartura e o orgulho
Não raro a produção do queijo é associada à idéia de fartura,
já que nada se perde. Até o soro
é usado para a alimentação de
porcos e animais domésticos.
"Tem um ditado que fala que,
em fazenda que vende leite, até
o cachorro é magro", diz Luciano Carvalho Machado, 43, produtor de Medeiros que há três
anos tem o registro do IMA e
divide com a mulher, Helena, e
os filhos as tarefas do fabrico.
Na propriedade, os queijos
levam, em baixo relevo, a marca
"LH" -iniciais dos nomes do
casal-, que denota certo orgulho. "Acaba sendo uma tradição, você não consegue ficar
sem fazer queijo. Ninguém ensina para ninguém. Parece que
todo mundo já nasce sabendo."
A jornalista JANAINA FIDALGO
viajou a convite da ONG SerTãoBras
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