São Paulo, sexta, 15 de maio de 1998

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GASTRONOMIA
Ver-o-peso, o empório do fim do milênio

NINA HORTA
especial para a Folha

Desce-se do avião em Belém e duas manoplas pesadas de umidade apertam seus ombros para baixo. É um desconforto estranho, será que é o peso de cima ou uma força do fundo que te puxa?
Quem tem nariz muito afiado que se cuide. Na chuva, Belém apodrece e cheira a cheiros misturados, frutas machucadas, águas, peixes, lagartos, cotias, muito lodo e muito mofo. Todas essas palavras cobram seu real significado ali, na lama que a chuva aprontou.
O hotel dá costas para o rio, é fortaleza cosmopolita, e as flores de plástico, portas de vidro, ar-refrigerado, encobrem todas as suspeitas de búfalos selvagens, piranhas, jacarés, Bezerro Mole, tambores, orações, acalantos, jambu, ninhais de garça.
No dia seguinte acordamos às 4h para a feira do açaí. Chegamos tarde ao mercado. Tarde para a chegada do açaí. Que horas será cedo? Com certeza fazem tudo o que podem na calada da noite fresca para evitar o bafo do dia.
Na manhã escura do mercado cai das árvores um cheiro de resina. Os motoristas de táxi de Belém têm vergonha de mostrar o mercado porque é sujo e tem lanceiros (trombadinhas). Lanceiros não vimos nenhum, mas, sujo? O que significa sujo? Como lutar contra o rio de peixe e de lama, os pescadores saídos das águas, mordidos de peixe, de piranha, ferrados de arraia, com os cabelos brilhantes de escamas?
Apesar de tudo há uma lógica no mercado. A cozinha de Belém se estende sobre folhas de banana e de açaí. Devem ser as mulheres que arrumam com tanta graça e cuidado os temperos do dia. Um maço de salsa, coentro, alfavaca, um limão, pimentas, cebolinha verde. Essa ala de ervas às 4h da manhã tem um frescor insuspeitado, ainda com lembranças de mato.
As pimentas catalizam terra e rio. São tão bonitas-cheirosas. Os vendedores fazem o molho na hora. Jogam as pimentas de cheiro numa garrafa de vidro, amassam-nas levemente com um espeto e enchem de tucupi amarelo e transparente. As pimentas sobem imediatamente e formam um colar colorido, ardido, na boca da garrafa.
Mais adiante o setor de terra seca, de roçadinho, de mandioca, macaxeira, farinhas grossas e finas, mandioca sendo ralada para o tucupi, gome para tacacá, beiju, tudo pronto para chupar o caldo dos peixes temperados. E mais mel, e cachaça e até pluma de garça.
Os peixes são como os bezerros do rio. Enormes, prateados, negros, dourados, barrentos, em breve alvas postas a serem cozidas em água e sal, alfavaca e chicória. Peixe com coco, fritada de tambaqui, bolinhos de pirarucu e cozidões.
E haja coco. Paneiros de pupunha vendidos ao lado da garrafa térmica com café (pupunha é coco?). É só descascar, como se descasca uma banana e a coisa tem gosto de palmito, milho e consistência de mandioca. Três em um.
No mercado inteiro tomam o açaí revigorante, púrpura, improvavelmente vermelho, um mingau como um vinho.
Um urubu preguiçoso abre as asas, cresce no alto da torre do Ver-o-Peso. Anuncia a comida da virada do milênio. Eu acredito nele, e no pato com tucupi e na castanha-do-pará.



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