São Paulo, quinta-feira, 15 de junho de 2006

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Crítica

Artista dá voz a fantasmas de carne e osso

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Um filme independente americano sobre personagens solitários que tentam lidar com as dificuldades de criar e manter relacionamentos. A sinopse do longa de estréia no cinema da artista plástica e videasta Miranda July esboça uma ficção simpática, mas não isenta da impressão de "mais do mesmo" que acompanha essa fatia do cinema dos EUA desde quando surgiu como novidade nos anos 80 até hoje, de Hal Hartley a Todd Solondz. "Eu, Você e Todos Nós" é, numa primeira impressão, um filme "fofo". Quer dizer, o equivalente a nuvens róseas no céu ou ao algodão-doce, prazerosos sem dúvida, mas incapazes de se fixar na memória. Com uma narrativa minimalista composta de cenas que quase não se conectam e uma estrutura próxima do filme-coral, em que circulam personagens propositadamente sem muita definição, meros esboços cuja intenção é alcançar uma poesia do trivial, o trabalho de Miranda July corria o risco de esbarrar nos limites de sua graça. Como tornar essas particularidades interessantes fora das quatro paredes de suas vidas anônimas? A personagem que a própria July interpreta fornece o fio que lhe permite escapar do impasse da "fofura". Christine é uma artista que produz performances visuais utilizando cacos alheios (fotos, cartões-postais) aos quais ela dá uma voz com que narra diálogos imaginários, relatos de memórias emprestadas. Ao mesmo tempo, sobrevive oferecendo serviços de transportes para pessoas idosas. É nessa dobra entre o pessoal e o social que a personagem e seu filme ganham consistência. Através de Christine, ela faz circular o imaginário e a realidade, o fantasma subjetivo e a necessidade objetiva. A presença das crianças e adolescentes no filme reitera isso, pois ninguém mais que eles carrega essa duplicidade entre o mundo quase só de sonhos e a iminência da vida concreta. Ao mesmo tempo em que as vidas particulares guardam suas belezas escondidas, é a personagem-artista-cineasta que as força a se lançarem fora de seus abrigos, de seus ninhos de segurança. É assim que Miranda July estende uma ponte de comunicação de seu universo com o público, ao emprestar sua narrativa a esses estilhaços de vidas antes condenados ao esquecimento e ao desconhecimento.


EU, VOCÊ E TODOS NÓS
   
Direção: Miranda July
Com: Miranda July, John Hawkes, Miles Thompson
Quando: em cartaz a partir de hoje nos cines Espaço Unibanco e Frei Caneca Unibanco Arteplex



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