São Paulo, sexta-feira, 15 de junho de 2007

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Crítica/circo

"Slava's Snowshow" dá sensação de déjà vu e de quero-ver-mais

Espetáculo russo de palhaços em cartaz em São Paulo desfruta da hipérbole e de truques velhos com criatividade e força poética

HUGO POSSOLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Confesso. Tenho inveja do palhaço Slava. Inveja saudável, de quem se sente desafiado criativamente.
Não aquela inveja dos adesivos de carro. Aliás, por deformação profissional, gostaria de ter um adesivo: eu não acredito em palhaços.
Explico. Slava Polunin ainda não está no Brasil (segundo a assessoria de imprensa do espetáculo, ele deve participar de apresentações no país a partir da próxima semana). Mas, no curso para ser Deus, ele passou na prova de onipresença e, ainda que ausente, dá um show de palhaçaria.
"Slava's Snowshow" inicia com uma cena de suicídio e já mostra a que veio. Não se limita ao tema da morte. Vai além, com forte clima onírico, oferece um vasto cardápio de imagens.
Arrisco dizer que boa parte delas já foi vista. Ou seja, não há nada de novo, mas é tão bem realizado que tem enorme força poética. Dá uma sensação de déjà vu misturada com quero-ver-mais.
Merecia um palco melhor. O Citibank Hall (antigo Palace) se esforça para realizar eventos cênicos, o que é ótimo para a cidade, mas falta-lhe uma adequação. Com ingressos que chegam a quase meio salário mínimo, se espera uma inclinação de platéia e melhor visibilidade das laterais.
O marketing também atrapalha um pouco. A publicidade, a serviço do consumo, vive da palavra "novo". O Omo é novo desde que nasci, há mais de 40 anos. "Slava's Snowshow" é expressivo em si, não precisa ser tratado como produto de consumo, cujo falso sentido de inovação confunde o público.
Ao contrário, seus palhaços provocam e interagem, sem medo de não pertencerem ao mundo comportado do consumismo.

Criatividade
As adjetivações de "o melhor do mundo" prejudicam sua obra. Não só porque ele não está presente no Brasil, mas porque em arte não existe o melhor. Existem gênios, e Slava é um deles. E há outros na recente palhaçaria universal, como Leo Bassi, Tortel Poltrona ou o brasileiro Cláudio Carneiro -que, tal qual Slava, também criou números para o Cirque du Soleil.
Os efeitos especiais de Slava não usam tecnologia cara. Seu poder está na criatividade. Truques quase tão velhos quando o teatro. Slava apenas desfruta da figura de linguagem fundamental dos palhaços, a hipérbole. Abusa das bolhas de sabão em profusão, papel picado em toneladas e bolas gigantescas. Exagero operístico que, à força, invade a alma e nos faz até aceitar a batida "Carmina Burana" como trilha.
O palhaço que representa Slava (o russo Artem Zhimolokhov) e seu parceiro gigante atuam de maneira quase minimalista, num contraste sofisticado, cuja delicadeza permite que esqueçamos que sua roupa seja parecida com a pior imagem de palhaço, aquela coisa esdrúxula chamada Ronald McDonald.
Slava não está no meio de nós, mas sua obra está, felizmente. Ele alcança lirismo sem se sujeitar à pieguice típica dos palhaços nostálgicos cheios de reminiscências da infância.
Quem disse que palhaço é exclusividade das crianças? Essa idéia vem do advento da televisão e do cinema, enfim, da cultura de massas, que infantilizou o poder da arte da bufonaria, tirando-lhe a sexualidade, por puro moralismo, e a capacidade crítica, dado o poder demolidor que o humor grotesco pode embutir.
Para sorte dos palhaços e alegria do público, Slava sabe disso.


HUGO POSSOLO, 44, é palhaço, dramaturgo e diretor do grupo Parlapatões e do Circo Roda Brasil.
AVALIAÇÃO: bom


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