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Crítica/circo
"Slava's Snowshow" dá sensação de déjà vu e de quero-ver-mais
Espetáculo russo de palhaços em cartaz em São Paulo desfruta da hipérbole e de truques velhos com criatividade e força poética
HUGO POSSOLO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Confesso. Tenho inveja
do palhaço Slava. Inveja saudável, de quem se
sente desafiado criativamente.
Não aquela inveja dos adesivos
de carro. Aliás, por deformação
profissional, gostaria de ter um
adesivo: eu não acredito em
palhaços.
Explico. Slava Polunin ainda
não está no Brasil (segundo a
assessoria de imprensa do espetáculo, ele deve participar de
apresentações no país a partir
da próxima semana). Mas, no
curso para ser Deus, ele passou
na prova de onipresença e, ainda que ausente, dá um show de
palhaçaria.
"Slava's Snowshow" inicia
com uma cena de suicídio e
já mostra a que veio. Não se
limita ao tema da morte. Vai
além, com forte clima onírico,
oferece um vasto cardápio de
imagens.
Arrisco dizer que boa parte
delas já foi vista. Ou seja, não há
nada de novo, mas é tão bem
realizado que tem enorme força poética. Dá uma sensação de
déjà vu misturada com quero-ver-mais.
Merecia um palco melhor. O
Citibank Hall (antigo Palace) se
esforça para realizar eventos
cênicos, o que é ótimo para a cidade, mas falta-lhe uma adequação. Com ingressos que
chegam a quase meio salário
mínimo, se espera uma inclinação de platéia e melhor visibilidade das laterais.
O marketing também atrapalha um pouco. A publicidade, a
serviço do consumo, vive da palavra "novo". O Omo é novo
desde que nasci, há mais de 40
anos. "Slava's Snowshow" é expressivo em si, não precisa ser
tratado como produto de consumo, cujo falso sentido de inovação confunde o público.
Ao contrário, seus palhaços
provocam e interagem, sem
medo de não pertencerem
ao mundo comportado do consumismo.
Criatividade
As adjetivações de "o melhor
do mundo" prejudicam sua
obra. Não só porque ele não
está presente no Brasil, mas
porque em arte não existe o
melhor. Existem gênios, e Slava
é um deles. E há outros na recente palhaçaria universal, como Leo Bassi, Tortel Poltrona
ou o brasileiro Cláudio Carneiro -que, tal qual Slava, também criou números para o Cirque du Soleil.
Os efeitos especiais de Slava
não usam tecnologia cara. Seu
poder está na criatividade. Truques quase tão velhos quando o
teatro. Slava apenas desfruta da
figura de linguagem fundamental dos palhaços, a hipérbole.
Abusa das bolhas de sabão em
profusão, papel picado em toneladas e bolas gigantescas.
Exagero operístico que, à força,
invade a alma e nos faz até aceitar a batida "Carmina Burana"
como trilha.
O palhaço que representa
Slava (o russo Artem Zhimolokhov) e seu parceiro gigante
atuam de maneira quase minimalista, num contraste sofisticado, cuja delicadeza permite
que esqueçamos que sua roupa
seja parecida com a pior imagem de palhaço, aquela coisa
esdrúxula chamada Ronald
McDonald.
Slava não está no meio de
nós, mas sua obra está, felizmente. Ele alcança lirismo sem
se sujeitar à pieguice típica dos
palhaços nostálgicos cheios de
reminiscências da infância.
Quem disse que palhaço é exclusividade das crianças? Essa
idéia vem do advento da televisão e do cinema, enfim, da cultura de massas, que infantilizou o poder da arte da bufonaria, tirando-lhe a sexualidade,
por puro moralismo, e a capacidade crítica, dado o poder demolidor que o humor grotesco
pode embutir.
Para sorte dos palhaços e
alegria do público, Slava sabe
disso.
HUGO POSSOLO, 44, é palhaço, dramaturgo e
diretor do grupo Parlapatões e do Circo Roda
Brasil.
AVALIAÇÃO: bom
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